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Rastreabilidade: uma proposta para o Brasil

Antonio Carlos Lirani1

Introdução

Com a publicação, no dia 09/01/02, da instrução normativa nº 1/2002, criando o SISBOV – Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina, o Ministro Pratini de Moraes, reconheça-se, vem fazendo um destacado trabalho à frente de sua pasta, deu mais um grande passo na direção da concretização do sonho brasileiro de se tornar o maior exportador mundial de carne bovina. Falta agora, a Secretaria de Defesa Sanitária (SDA) regulamentar a normativa, estabelecendo as regras de funcionamento do SISBOV, de forma livre e aberta, contemplando as iniciativas e criatividade das organizações e empresas interessadas em se credenciarem para agir como operadoras de rastreabilidade.

A rastreabilidade deve ser, preferencialmente, gerida pela iniciativa privada, sob o controle e monitoramento de órgãos superiores. Quanto menor a intervenção do Estado e maior a eficácia de sua regulamentação e controle, melhor será o SISBOV. Com um mínimo de padronização, é possível termos várias empresas credenciadas, operando sistemas de rastreabilidade, com metodologias, tecnologia, banco de dados e equipes próprias, totalmente compatíveis entre si, sem o risco de perda de informação, em todo o ciclo produtivo do carne.

Embora desnecessário, do ponto de vista técnico, se for obrigatória a manutenção de um banco de dados nacional único, este poderia ser criado e mantido apenas com os dados padrões, definidos pelo SDA, dos animais abatidos, para efeito de rastreamento, não havendo necessidade de manter os dados dinâmicos de movimentações dos animais, os quais seriam registrados e mantidos nos banco de dados das operadoras de rastreabilidade. Quando um animal passasse de uma operadora para outra, da mesma forma como aconteceria entre os elos da cadeia produtiva, levaria consigo, via mensagem EDI, o seu histórico, não havendo assim, perdas de informação. No abate, os frigoríficos forneceriam os dados finais com informações de carcaça, capa de gordura, etc, congelando o registro de cada animal abatido. Estes dados padronizados, poderiam então ser enviados, para o sistema central, via mensagens EDI.

Dentro destes conceitos, propomos um modelo que poderia ser implementado pelo SISBOV, respeitando a instrução normativa nº 1/2002 do MAPA e atendendo às exigências dos regulamentos CE 1760/2000 e 1825/2000, da Comunidade Européia (CE).

O modelo, foi idealizado durante o desenvolvimento do sistema de rastreabilidade que pretendemos credenciar junto ao MAPA, para operarmos no Brasil, o qual vem sendo pesquisado, nos últimos 4 anos, sobre um banco de dados com mais de 300.000 animais, aos quais deverão ser somados mais 200.000, até maio deste ano, representando o rebanho de cerca de 140 propriedades dos 120 mais destacados criadores, de quase todas as regiões do país. Este sistema oferecerá às empresas parceiras, alta tecnologia em rastreabilidade, a qual atenderá todos os requisitos da regulamentação, com razoável valor agregado. Apesar do sucessos alcançado com os modelos e protótipos desenvolvidos neste experimento, tem sido nossa orientação, desde o início, evitar qualquer implantação definitiva antes do anúncio oficial das regras que regerão o SISBOV, para resguardar as empresas parceiras da necessidade, de correções de modelos e perda de investimentos, os quais poderiam ser feitos antes de se conhecer as regras do sistema SISBOV.

A rastreabilidade é sinônimo de Credibilidade. Se fizermos implantações sem critério, podemos correr o risco de colocarmos o SISBOV sob questionamento e levarmos muito tempo para recuperarmos o crédito, com grandes impactos e prejuízos ao país.

É preciso diferençar certificadoras de origem, de qualidade, de conformidade, etc, de operadoras de rastreabilidade. Por isso, preferimos chamá-las de operadoras e não certificadoras. Estas também não devem ser confundidas com softwarehouses ou com provedores de Internet ou de sistemas.

Uma operadora de rastreabilidade, deve ser uma empresa criada especificamente para este fim, credenciada e controlada por órgãos superiores. Pode ser criada de forma multidisciplinar, via parceria entre várias empresas que representem as áreas do conhecimento, afins, desde o trabalho zootécnico de campo, até o mais alto nível da Tecnologia da Informação (TI).

O desempenho de cada operadora de rastreabilidade, seria medido pelos resultados de auditorias internas, de órgãos nacionais e internacionais, de testes de simulação de contaminações e na operação em condições reais. Os resultados dessas auditorias, viria a ser o fator catalisador da sua credibilidade nacional e internacional, da preferência e confiança dos compradores e consumidores, pelo seu “selo de rastreabilidade”.

Cada elemento da cadeia produtiva, que tenha o animal ou corte de carne em seu poder, seria o responsável por alimentar o banco de dados, com as informações definidas como relevantes ao processo, pelas normas do SDA. Este processo de alimentação de dados, talvez seja o maior desafio à implementação do SISBOV, especialmente para os pequenos produtores que dispõem de poucos ou nenhum recurso tecnológico. Os bancos de dados distribuídos em cada operador de rastreabilidade, permitiriam que os operadores dessem atendimento personalizado à estes produtores e que criassem sistemas específicos, para atender cada caso.

Outra vantagem do uso de bancos distribuídos, é que o Brasil teria, na verdade, “vários sistemas de rastreabilidade” integrados, mas totalmente independentes entre si. Se ocorrer “uma falha” em um dos sistemas, que o coloque em situação de descrédito, somente este seria impactado e não todo o sistema nacional (SISBOV), caso este venha a ser representado por um banco de dados nacional.

Rastreabilidade da Carne Bovina – um esquema proposto

Vamos esquematizar um sistema de rastreabilidade, que esteja alinhado com a realidade e condições brasileiras e que também respeite a individualidade dos elementos que formam a cadeia produtiva. O sistema deve ser factível financeira e operacionalmente e atender aos quesitos básicos dos Regulamentos EC 1760/2000 e EC 1825/2000, da Comunidade Européia.

Elementos básicos

Atendendo às especificações dos regulamentos da Comunidade Européia (CE 1760/2000, artigo 3) o sistema teria como elementos básicos:

1 – Identificação única e alternativas de sistema de identificação.

2 – Bancos de Dados Informatizados, um em cada operador de rastreabilidade credenciado.

3 – Passaportes informatizados (virtuais) dos animais, que os acompanhe em movimentações.

4 – Histórico individual, por animal, a ser mantido e guardado, em cada propriedade onde o animal estiver ou passar.

Identificação Única

Para o sistema proposto, com várias operadoras de rastreabilidade credenciadas, os requisitos mínimos do código de identificação são:

– Número fixo de dígitos totais

– Identificação da operadora de rastreabilidade

– Numeração seqüencial do animal – com divisão de campos ou não

– Dígito verificador

Existem muitas formas para compor uma identificação. A mais adequada, seria aquela em que a numeração seqüencial do animal, seguisse uma regra de formação que já fornecesse alguma informação sobre o animal e não simplesmente uma seqüência numérica.

Sistema de Identificação

Sem dúvida, a implantação de chip (transponder) no animal, é o sistema mais desejado pelo criador. Isto viria facilitar grandemente o manejo, porém o seu preço, atualmente, é muito alto para se encaixar na planilha de custos da maioria dos produtores. Esperamos que novas pesquisas, como a da Embrapa, consiga criar produtos com significativas reduções de preços. O brinco de orelha se apresenta como a alternativa mais viável, muito embora represente mais de 80% do custo total do registro de um animal em um programa de rastreabilidade.

Sem querer entrar no debate da preservação da qualidade do couro, seria recomendável um estudo detalhado do uso da marca à fogo, pois é usada com sucesso, pelas Associações de Raça, para identificar os animais registrados. Salvo melhor interpretação, as Associações de Raça, que possuem excelente “know-how” nesta área, poderiam oferecer serviços de registro e controle da marcação de gado de corte, a baixo custo, uma vez que o volume de marcações seria alto. Afinal, a marcação à fogo é uma realidade nacional.

Outros sistemas estão em estudos e a combinação de mais de um dos citados, também seria válida. Todas elas, necessitariam ser homologadas pelo SDA.

Banco de Dados Informatizado

O sistema que propomos é baseado na livre iniciativa e na liberdade de criar. A Tecnologia de Informação (TI) disponível, permite que sejam desenvolvidos sistemas abertos, integrados e compatíveis, dentro de regras e padrões mínimos, incentivando a criatividade, multiplicidade e inovação dos sistemas. Assim, cada operadora credenciada, possuiria seu próprio banco de dados, com a tecnologia, formatos e programas, que escolher, desde que obedeça o padrão mínimo estabelecido pelo SDA.

Cada operadora teria metodologia e equipe próprias, usando o máximo de seus conhecimentos e tecnologia para desempenhar suas funções. Neste cenário ocorreria a salutar concorrência entre sistemas, que somente traria benefícios para o sistema nacional de rastreabilidade, o SIBOV, como um todo.

Um dos maiores desafios do sistema, será a alimentação dos dados de ocorrências passíveis de registro, no sistema, a qual deverá ser feita pelo elo da cadeia produtiva que estiver de posse do animal ou corte, quando acontecer a ocorrência a ser registrada. Muitos dos elementos que formam a cadeia produtiva da carne, possuem pouco ou nenhum recurso tecnológico, principalmente os pequenos produtores, os quais dependem de suporte personalizado. Somente um sistema distribuído poderia oferecer tal suporte. Num sistema centralizado, este suporte seria quase impossível.

Passaportes Informatizados

O conceito de passaporte, em rastreabilidade, nasceu na França, onde cada animal possuía uma caderneta onde eram anotados os seus dados cartoriais e outras ocorrências importantes para o controle sanitário. Quando o animal era vendido, o passaporte o acompanhava. O passaporte acompanhava o animal, até o seu abate. Ainda hoje, estes passaportes são usados, em algumas regiões da França.

Este conceito, permaneceu vivo apesar da evolução tecnológica. Hoje podemos substituí-lo, pelos bancos de dados integrados à Internet, uma espécie de “passaporte virtual”, onde os dados dos animais podem ser acessados, praticamente, de qualquer ponto do globo, evitando a presença da incômoda caderneta.

A versão moderna deste passaporte, é requerida quando um animal passa de uma operadora de rastreabilidade para outra ou entre determinados elos da cadeia produtiva. Este recurso se chama EDI – Electronic Data Interchange. São mensagens eletrônicas padronizadas, transmitidas, normalmente entre empresas, via rede de computadores. Qualquer tipo de informação pode ser trocada, via EDI. Observar a segurança deste sistema, pois as informações, ao contrário da velha caderneta francesa, chegariam ao destino com velocidade eletrônica, via de regra, muito antes que os próprios animais ou cortes.

Histórico Individual

A função básica da rastreabilidade é determinar o histórico de localização e utilização de um produto, fornecendo elementos mínimos para que uma pesquisa ou investigação aprofundada, possa ser feita com segurança, determinando causas de problemas que vieram a ocorrer com este produto e a consequente oferta de soluções.

Se ocorrer um caso de contaminação, em um corte de carne, e a operadora conseguir rastreá-lo, identificando os locais por onde os cortes, carcaças e o próprio animal em pé estiveram, além de algumas informações adicionais, pode-se dizer que esta é uma operação de rastreabilidade bem sucedida.

O processo de pesquisa e investigação de causas, terá todos os elementos para ser conduzido, se em cada local identificado, existir documentação histórica das ocorrências com este animal ou cortes. Daí a importância dos históricos individuais que devem ser registrados e mantidos, pelas propriedades. Pouco importa se em sofisticados sistemas informatizados ou em cadernetas manuscritas. É importante que tenham caráter oficial na empresa, sejam formais e contenham dados precisos e confiáveis.

Então podemos dizer que, a verdadeira função da rastreabilidade, é localizar os históricos individuais, do animal pesquisado, em cada local por onde passou, pois neles estariam as informações necessárias para completar o processo de investigação.

Informações Mínimas Padronizadas

Para que o sistema proposto, possa ter o desempenho esperado, particularmente para a implementação compatível de bancos de dados em cada operadora de rastreabilidade, será necessário que sejam regulamentadas e padronizadas algumas informações como:

1 – A estrutura mínima da identificação do animal, para compatibilidade entre os sistemas das operadoras.

2 – As informações exigidas pelos clientes, que atendam as exigências dos Regulamentos da CE.

3 – A lista mínima de dados cartoriais sobre o animal, que devem constar do Banco de Dados.

4 – A definição das áreas de ocorrências que devem ser registradas no banco de dados. Por exemplo:

– Movimentações

– Alimentação

– Sanitárias e Ambientais

– Operação Diária (Manejo)

Dentro de cada uma destas áreas, identificar a lista mínima de ocorrências padrão, que devem ser obrigatoriamente registradas. O Histórico Individual, deve conter, todas as informações de ocorrências relevantes na vida do animal ou cortes. Destas, apenas as padronizadas, pela SDA, seriam registradas no banco de dados das operadoras de rastreabilidade.

Considerando que as informações do sistema de rastreabilidade, estariam em banco de dados acessáveis via Internet, é importante que sejam definidos os níveis de acesso aos vários dados disponíveis, desde os elementos da cadeia produtiva até o consumidor final.

Considerações

As informações entre elos da cadeia produtiva e entre as operadoras, sua codificação e forma de representação, já estão propostas pela EAN Internacional e aprovadas pela UN/ECE – United Nations Economic Commission for Europe. Um Grupo de Trabalho, está sendo formado, sob a coordenação da EAN Brasil, para definir proposta de padrões de codificação para serem usados no Brasil, entre os elos da cadeia produtiva da carne, baseados nos padrões internacionais.

Notar que não existe uma implementação de rastreabilidade para a exportação e outra para o mercado local. Implementada para um mercado, automaticamente estará implementada para o outro. O que existem, são pequenas variações de implementação, para atender alguns mercados específicos.

Finalmente, é importante observar que definimos um sistema de forma impessoal, diferentemente de sistemas fiscais ou outros. Para que tenhamos sucesso nesta implementação, é recomendável que os sistemas de rastreabilidade sejam impessoais. A figura central do sistema, depois do próprio animal e seus cortes, é a propriedade onde o animal ou corte está ou esteve. O objetivo único do sistema é a rastreabilidade de um produto, identificando-se as localizações e usos do produto, para fins de investigação estritamente sanitárias e de segurança alimentar. A responsabilização, por negligência, por exemplo deve seguir outros processos convencionais, que não o sistema de rastreabilidade, o qual servirá apenas como ferramenta de localização. A tentativa de uso do sistema de rastreabilidade para fins fiscais ou outros, poderá por em risco a sua implementação.

Antonio Carlos Lirani

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1INTERall Informática Ltda.

0 Comments

  1. Antonio Carlos Lirani disse:

    Agradeço as referências do Sr. Nelton Souza, sobre o artigo Rastreabilidade: uma proposta para o Brasil. O Sr. Nelton tem razão, os Sindicatos Rurais deverão exercer importante papel na implantação do sistema de rastreabilidade, em nosso País.