Por Antonio do Nascimento Rosa1 e Luiz Otávio Campos da Silva2
Forças evolutivas: naturais e pela mão do homem
Milhares de anos antes da domesticação, ainda na Idade da Pedra, caçadores da Europa e do norte da África perseguiam um gado selvagem, denominado urus ou auroch (Bos primigenius), considerado o ancestral das raças bovinas criadas atualmente.
A partir de sua região de origem, do norte da Índia até os desertos da Arábia, este bovino selvagem, após a era glacial, provavelmente há uns 250.000 anos, migrou para outras regiões do globo, tais como Oriente Médio, norte da África e Europa. Diferentes grupos, desde então, com processos de reprodução circunscritos às suas populações, começaram a se diferenciar, independentemente, dando origem a duas subespécies: Bos primigenius primigenius, ancestral do gado europeu (Bos taurus), sem cupim, e Bos primigenius namadicus, que deu origem ao gado indiano, de cupim, também denominado zebu.
Sob as mãos do homem, após a domesticação, ocorrida por volta de 10.000 A.C., o bovino primitivo passou a sofrer grandes transformações, resultado não só da seleção natural e do isolamento geográfico, como também em função de eventos genéticos, como a mutação, fonte natural de novos genes para a população. Além dessas forças naturais, incluindo-se a grande diversidade de ambientes disponíveis no globo terrestre, em função de diferenças de solo e de clima, a própria história evolutiva das civilizações, com seus reflexos sobre os objetivos da criação e da seleção dos animais, atuaram decisivamente para a evolução do gado bovino. Desta forma se explica o grande número de raças disponíveis, atualmente, superando a casa dos milhares, de acordo com algumas fontes.
Raças de maior expressão econômica para o Brasil
Tendo em vista a origem e grau de parentesco, as raças bovinas de importância econômica para o Brasil podem ser reunidas, de uma maneira simplificada, nos grupos descritos a seguir.
Raças mochas das ilhas britânicas
Nas regiões de origem do gado bovino, norte da África e Oriente Médio, os predadores carnívoros constituíam uma constante ameaça aos bovinos de modo que, nestas regiões, predominam as raças de chifre, importante arma de defesa. É compreensível, portanto, que raças mochas tenham encontrado condições favoráveis de sobrevivência nos países do noroeste europeu e nas ilhas britânicas, com menor incidência de inimigos naturais.
São raças de porte médio, com peso de abate ao redor de 450 kg, apresentando excelentes características de fertilidade e qualidade de carne, em termos de maciez, principalmente, devido à presença de gordura entremeada nos músculos (marmoreio). Em função destas qualidades e de serem geneticamente mochas, característica altamente desejável com a intensificação dos sistemas de produção, estas raças foram amplamente difundidas contribuindo para a formação de várias outras, em todo o mundo. Animais Red Poll introduzidos no início da colonização deram origem, no Brasil Central, à raça Mocha Nacional que teve influência na formação de nossas raças zebuínas mochas. As raças Brangus e Red Brangus criadas em vários países, foram formadas a partir de cruzamentos entre as raças Angus e Red Angus com Brahman, nos Estados Unidos, e com a raça Nelore, no Brasil.
Raças do continente europeu
Envolvem dois grupos principais: o dos países baixos e o do interior do continente europeu. No primeiro, os animais são de porte menor, com peso médio adulto em torno de 500 kg, com características mais leiteiras que o segundo. O principal exemplo, neste grupo, é a raça Hereford, seguindo-se as raças Holandesa de corte e de leite, Shorthorn, Main-Anjou, Belgian Blue, Jersey, Guernsey e Normando, dentre outras.
As demais raças do continente europeu, incluindo aquelas de pelagem uniforme, as raças malhadas e as italianas, são de porte maior, cujo peso ideal de abate encontra-se entre 550-600 kg. A principal característica destas raças é a presença de grandes massas musculares que lhes confere excelente conformação frigorífica e elevado rendimento ao abate, razão pela qual foram exportadas para diferentes regiões do globo.
Comparativamente às raças britânicas, no entanto, são mais tardias, do ponto de vista sexual e de acabamento de carcaça, apresentando, ainda, em função do seu tamanho adulto, maiores custos de mantença. Exemplos de raças neste segundo grupo são: Devon e South Devon, Limousin, Salers, Blonde d´Aquitaine, Suíça Parda e Pardo Suíço Corte, Simental-Fleckvieh, Gelbvieh, Charolês, Piemontês, Marchigiana e Chianina.
De forma semelhante às britânicas, estas raças são, também, muito sensíveis aos efeitos de clima tropical. Nestas condições elas são utilizadas, com mais sucesso, em cruzamentos com raças locais tendo contribuído para a formação de diversas outras raças em todo o mundo.
Raças zebuínas
Em função de terem evoluído em condições ambientais mais drásticas e de terem sido objeto de seleção em passado mais recente, as raças zebuínas apresentam, em relação às raças européias, índices produtivos mais baixos. Em sua região de origem, Índia e Paquistão, apresentam peso adulto variando de 350 a 450 kg. São, portanto, animais menores, de tamanho médio a pequeno, mais tardios, sexualmente, com massas musculares menos desenvolvidas e com carne mais dura. Por outro lado, apresentando características anatômicas distintas do gado europeu, toleram melhor o calor, a umidade e os endo e ectoparasitas. Estas características de adaptabilidade constituem o grande trunfo destas raças para sistemas de produção em meio ambiente tropical.
Gir, Guzerá, Sindi e Kangaian são raças criadas no Brasil semelhantes às suas raças fundadoras da Índia e do Paquistão. Por outro lado, a raça Nelore evoluiu, no Brasil, em direção distinta do seu ancestral indiano, o Ongole, incluindo contribuições de outras raças indianas, além de diferente objetivo de seleção. No Brasil foram formadas, ainda, as raças Indubrasil, Tabapuã e as variedades mochas Gir e Nelore, além das variedades leiteiras Gir, Guzerá e Nelore. Nos Estados Unidos, a partir de animais importados diretamente da Índia e de outros de origem brasileira, formou-se a raça Brahman, composta zebuína que inclui influências do Gir, Guzerá, Indubrasil e Nelore.
No Brasil, especialmente, as melhorias que vem sendo verificadas nos sistemas de produção, em termos de alimentação e condições de sanidade dos rebanhos, e no valor genético dos animais, em função da implantação de programas de melhoramento, abrem para as raças zebuínas um promissor cenário para o meio ambiente tropical, numa época em que o mercado passa a valorizar criações em ambiente natural.
Raças européias adaptadas
O termo “raças adaptadas” foi incorporado recentemente ao vocabulário zootécnico por ocasião do lançamento da idéia dos “compostos”, como é o caso, no Brasil, do Montana Tropical. São raças de origem européia, portanto, da espécie Bos taurus que, por seleção natural e/ou artificial, apresentam boa adaptabilidade aos climas quentes. As principais características destas raças são, além da adaptabilidade ao meio ambiente tropical, a fertilidade e a maciez da carne. Exemplos: Mocha Nacional, Caracu, Caldeano, Lageano e Pantaneiro, no Brasil; Texas Longhorn, nos Estados Unidos, Romosinuano, na Colômbia e N´Dama, no oeste da África.
Raças compostas
Raças compostas, também chamadas de raças sintéticas, são raças formadas a partir de duas, três ou mais raças das espécies básicas: Bos taurus e Bos indicus. A razão principal da formação de compostos reside na tentativa de se combinar, em um indivíduo mestiço, as características desejáveis de suas raças fundadoras. Geralmente, o que se procura é combinar a produtividade e a qualidade da carne, por um lado, com a adaptabilidade e baixos custos de mantença, por outro.
Vários são os exemplos de raças compostas. Talvez a pioneira delas, a mais conhecida em todo o mundo, seja a raça Santa Gertrudis, formada nos Estados Unidos, a partir da década de 30, pela realização de cruzamentos entre as raças Shorthorn (Bos taurus) e Brahman, o zebu americano (Bos indicus). O composto final apresenta a proporção de 5/8 de genes da raça européia e 3/8 da zebuína. A exemplo da Santa Gertrudis, várias outras raças compostas foram formadas, em todo o mundo, nos moldes 5/8 europeu – 3/8 zebu. São exemplos: Brangus e Red Brangus (Brahman ou Nelore com Angus ou Red Angus), também conhecido por Ibagé, no sul do Brasil, Braford (Brahman ou Nelore com Hereford), denominada Pampiana, no Rio Grande do Sul, Senepol (Red Poll com N´Dama), Canchim (Charolês com zebu, predominantemente Nelore), Simbrah e Simbrasil (Brahman ou Nelore com Simental ou Fleckvieh), Pitangueiras (Red Poll com Guzerá), Santa Cruz (Gelbvieh com Brahman ou Nelore) e Lavínia (Suíça Parda com Guzerá), dentre outras.
Outra estratégia de formação de raça composta é aquela na qual são envolvidas três raças originais, como é o caso do Beefmaster, formado nos Estados Unidos, que inclui contribuições do zebu americano, o Brahman, e das raças européias Hereford e Shorthorn. Composição semelhante apresenta a raça Bonsmara, formada na África do Sul, que inclui a raça nativa africana Afrikander, ao invés do Brahman, mantendo-se as demais.
Mais recentemente, nova idéia de formação de compostos tem sido implementada, caso do Montana Tropical, em cuja composição final podem entrar até quatro grupos básicos de raças: N (de Nelore), A (de raças Bos taurus adaptadas aos trópicos), B (de raças britânicas) e C (de raças européias continentais). A idéia central na formação deste composto é manter uma proporção de 50% de genes de raças adaptadas ao ambiente tropical (N+A), que lhes possa imprimir rusticidade, e 50% de raças européias não adaptadas (B+C), cuja contribuição esperada é a precocidade e qualidade do produto final.
Alternativas para o melhoramento genético
As alternativas clássicas para o melhoramento genético, em qualquer região ou país, são: escolha da raça melhor adaptada, formação de nova raça, cruzamentos entre raças e sistemas combinados. A primeira destas alternativas, sem dúvida, é a mais simples e aquela que proporciona sistemas de produção com os menores custos. Neste caso, o criador pouco terá que investir em obras e tratamentos especiais, em relação a outras raças menos adaptadas, para proporcionar conforto e saúde ao rebanho, requisitos básicos para a garantia de bons índices de fertilidade e produção. Desde que a raça escolhida possa atender, satisfatoriamente, as exigências do mercado esta alternativa, sem dúvida, poderá proporcionar, também, a melhor relação custo: benefício.
A pecuária brasileira apresenta uma história interessante, neste aspecto. O primeiro gado bovino a chegar no Brasil Colônia foi de origem européia, vindo da península ibérica. Estima-se que tenham entrado no país cerca de 300.000 animais destas raças, sendo permitidas importações, principalmente de sêmen e de embriões, até os dias atuais. Em todo o período de importação de gado de origem indiana, desde o final do século XIX até o ano de 1962, em contrapartida, foram importadas apenas 6.208 cabeças. No entanto, de um rebanho total de cerca de 170 milhões, admite-se, hoje, que 136 milhões sejam zebuínos, dos quais 108 milhões apresentam predominância da raça Nelore.
Resolvidos os problemas básicos de alimentação e de saúde do rebanho, nesta primeira etapa, e caso o criador queira agregar mais valor e qualidade ao produto final, as alternativas seguintes poderiam ser implementadas. Em qualquer delas, no entanto, a seleção deve ser continuada, ano após ano, no sentido de se eleger, para a reprodução, matrizes e touros superiores nos aspectos de adaptabilidade, fertilidade, precocidade, conformação frigorífica e qualidade da carne, dentre outras características.
A formação de novas raças pode possibilitar a exploração de combinações de características desejáveis de diferentes raças, utilizando-se monta natural, ao invés de inseminação artificial, como exige a maioria dos planos de cruzamentos entre raças. No entanto, este empreendimento é de longo prazo e demanda um rebanho base suficientemente grande que possibilite minimizar os inevitáveis problemas de consangüinidade que certamente terão que ser enfrentados, na fase de fixação das características da nova raça. Aplica-se, portanto, a poucas situações. Os cruzamentos, em casos onde a inseminação artificial pode ser usada com eficiência, são práticas mais simples que a formação de novas raças sendo, portanto, mais fáceis de serem incorporados aos sistemas de produção.
Conclusão
A escolha de qualquer das alternativas para o melhoramento da produção de gado de corte passa obrigatoriamente pela análise detalhada de três importantes componentes do processo de decisão: o ambiente, o mercado a ser atendido e o animal a ser criado. O conhecimento do ambiente no seu sentido mais amplo, envolvendo os elementos do clima, endo e ectoparasitas e o sistema de produção a ser adotado, dentre outros fatores, e do mercado, avaliando-se as exigências do consumidor, o tipo de comercialização e o valor do produto final, certamente levará o criador a fazer uma opção consciente. Não pela raça e/ou sistema de produção que lhe possa proporcionar, biologicamente, os melhores resultados, mas por aquelas combinações de raças e sistemas de produção que sejam, na prática, economicamente, as mais eficientes.
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1Antonio do Nascimento Rosa é Engenheiro Agrônomo, Doutor em Ciências, Embrapa Gado de Corte, Rodovia BR 262 km 4, Caixa Postal 154, CEP 79002-970 Campo Grande, MS; anrosa@cnpgc.embrapa.br.
2Luiz Otávio Campos da Silva é Zootecnista, PhD., Embrapa Gado de Corte, locs@cnpgc.embrapa.br