Por Antonio Carlos Lirani1
“Ninguém atira pedras em laranjeira descarregada” é o dito popular. A laranjeira brasileira está carregada de ótimos frutos e assim, pedras das barreiras não tarifárias estão sendo lançadas contra nossos produtos.
Se o recente aparecimento de um foco de aftosa gerou tamanho barulho no mercado, o que acontecerá se as baterias se voltarem contra nosso frágil sistema de certificação de origem bovina? O SISBOV é o nosso telhado de vidro à mercê das pedras da concorrência internacional.
Urge implantarmos as correções que o SISBOV tanto necessita. Não se trata de tirar o mérito de sua implantação, porém o sistema brasileiro de certificação de origem foi criado com falhas conceituais graves. Estamos advertindo sobre este fato, desde a sua criação. O SISBOV precisa ser reestruturado.
Lemos que a CNA e a Sociedade Rural Brasileira (SRB) se dispõem a contratar técnicos de notória capacidade para elaborar um novo sistema o qual funcionaria em paralelo com o SISBOV, de forma que o pecuarista poderia optar por um deles. Se já existem dificuldades para administrar um sistema, como conseguiremos manter dois deles em paralelo? Porque não reestruturar o já existente o qual foi implantado com tanta dificuldade?
Será necessária muita competência nesta correção de rumo, seja com um ou com dois sistemas. Analisemos alguns pontos do SISBOV, os quais requerem cuidadosa análise:
1 – A participação do criador no SISBOV, deveria ser voluntária e não obrigatória (item 9 da IN 01/2002). O objetivo deve ser 100% de adesão, mas de adesão voluntária do pecuarista, conquistada pelos méritos do sistema e de sua implantação. Ao invés de impor, o governo deveria motivar os produtores à participação, incentivando-os e mostrando a importância de sua adesão e as vantagens para eles e para o país. O governo deve assumir a verdadeira posição de parceiro no processo, oferecendo vantagens e não introduzindo mais custos ao produtor. O subsídio de parte da operação, como a distribuição gratuita de brincos, seria altamente recomendável, pelo menos até o sistema entrar em regime.
Por outro lado, o SISBOV só enfatiza o período pré-abate do ciclo da carne, ou seja, do nascimento até a entrada no frigorífico. É importante lembrar que é no frigorífico que existe a maior probabilidade de perda da rastreabilidade, quando da divisão e desossa da carcaça. O SISBOV deveria estabelecer, claramente, os procedimentos a serem seguidos durante o ciclo completo da cadeia, desde o nascimento do animal ao embarque da sua carne ao comprador, para garantir a perfeita rastreabilidade do produto dentro do processo de Certificação de Origem.
2 – Os Bancos de Dados deveriam ser geridos pela iniciativa privada. Aliás, todo o processo de rastreabilidade deveria ser gerido pela iniciativa privada. Ao governo cabe regulamentar e controlar, nunca operar. O Banco de Dados nacional de caráter oficial (item 8.1 da IN no 01/2002) gera a desconfiança da cadeia produtiva, pois expõe toda a sua movimentação comercial atrapalhando a perfeita implantação do objetivo maior que é o processo de rastreabilidade. O Banco de Dados oficial representa um risco para o SISBOV.
3 – A fixação de prazos mínimos de certificação pré-abate (permanência) deveria ser revista (IN 88/2004). Um sistema que aceite apenas alguns dias, mesmo que 365, de certificação pré-abate, não apresenta a mínima condição de rastreabilidade pois, no máximo, consegue levantar os últimos dias de vida do animal sem, contudo, provar sua origem. Uma negociação entre os representantes do governo, da cadeia produtiva e de especialistas da área, geraria idéias mais criativas para conseguirmos os animais, efetivamente certificados, necessários ao abate, até que o processo entre em regime e ofereça, de forma contínua, número suficiente de animais certificados. É só pensar um pouco.
Da mesma forma, um sistema que ao rastrear um corte de carne nos levar a um número excessivo de possíveis animais geradores deste corte, não poderá ser aceito como um sistema válido de rastreabilidade, pois, dificilmente conseguiremos identificar e sanar a causa do problema pesquisado. Em resumo, sistemas com estas características não justificam sua implantação, pois serão investidos dinheiro e trabalho sem nenhum retorno, já que ambos não garantem a rastreabilidade do rebanho, ou seja, não nos permite declarar aos compradores que a carne é rastreável e nem que certificamos a origem do rebanho abatido. Estamos nos expondo à criação de novas barreiras. Se um embargo ocorrer por este motivo, a solução demandará tempo e causará estragos em nossas exportações.
4 – A criação das “certificadoras” sem obediência às normas ISO/IEC 65 (item 5.2 da IN 01/2002), está na raiz do problema. O próprio SISBOV, cuida demonstrar este equívoco quando contraria a definição de certificação do INMETRO, atribuindo: “O monitoramento nas propriedades será de responsabilidade da Certificadora que estabelecerá o sistema de registro, informatizado ou não, a ser mantido nas propriedades, tendo por finalidade: …” (item 3 da IN 47/2002). Como pode uma “certificadora” certificar a sua própria operação?
As atuais “certificadoras” são na verdade, operadoras de rastreabilidade, uma vez que não são terceiras partes, pois trabalham para os pecuaristas e têm interesses no processo. São importantes e bem vindas no processo e diga-se: operam dentro das regras estabelecidas pelo Ministério. A criação do SISBOV deveria seguir os mesmos procedimentos aplicados pelo MAPA, com louvor, na criação da PIF-Produção Integrada de Frutas, para atender, entre outros, as exigências do protocolo EUREPGAP.
Notar que na forma como o SISBOV está implementado hoje, não existem impedimentos, legais ou éticos, para que as associações de raça ou de classe assumam o papel de “certificadoras”. Já no modelo que respeite as normas internacionais, as associações trabalhariam como operadoras de rastreabilidade, deixando a certificação por conta das certificadoras credenciadas pelo INMETRO. O mesmo conceito se aplica aos governos que pretendem ser “certificadores” do SISBOV.
Tanto as associações como os governos, não são terceiras partes para fins de certificação como determina o INMETRO, pois são partes interessadas no processo. Seria o mesmo que um pecuarista, dono de uma “certificadora”, viesse a certificar o seu próprio rebanho.
Desnecessário é argumentar sobre as vantagens que teríamos se a carne brasileira fosse certificada por organismos reconhecidos internacionalmente. Também não é difícil concluir que, se não tomarmos a iniciativa de introduzir esta importante correção no SISBOV, em futuro próximo seremos forçados fazê-lo por exigência do mercado importador. Então porque não fazê-lo já, por iniciativa própria e sem correria?
5 – O Documento de Identificação (item 7 da IN no 01/2002) nos termos propostos, precisaria ser revisto. O documento físico em papel, é um atraso tecnológico. Precisaria ser substituído por um documento virtual, que exista apenas nos bancos de dados do sistema. A passagem do documento entre os produtores e entre estes e os frigoríficos seria feita virtualmente, pela troca de senhas de acesso ao registro do animal, nos Bancos de Dados. Consta que o MAPA não implementou este sistema pela falta de microcomputadores nos Estados. Se confirmada, seria uma justificativa, no mínimo, estranha em um País que implantou o voto eletrônico em mais de 300 mil sessões eleitorais.
6 – É preciso rever o sistema de codificação dos animais e também os procedimentos de distribuição de códigos para os criadores, os quais poderiam ser mais eficientes e eficazes se fossem administrados pela iniciativa privada. As alterações efetuadas no código (IN nº 21/2004), foram bem intencionadas, mas insuficientes e complicaram ainda mais o processo de distribuição. É preciso dar maior autonomia para os pecuaristas identificarem os animais, simplificando o sistema de distribuição. A propósito, é preciso também atentar que não existe sistema de identificação à prova de fraude. Existem sim, regras simples e bem definidas, controles severos e, principalmente, penas exemplares para os fraudadores. O ambiente de parceria, respeito e confiança mútua seria a melhor política neste campo.
É preciso ser usado o conceito da identificação automotiva que institui a placa do veículo, o código RENAVAM e o número do chassis. O número a ser gravado no brinco, deve ser pequeno e prático como o das placas dos automóveis. Os códigos internos ao registro do animal, equivalentes aos números do chassis ou do RENAVAM do sistema automotivo, podem ser complexos e ter quantos dígitos o sistema exigir. A permissão do uso do código da fazenda, no animal, precisa ser reavaliado.
7 – A padronização do discurso sobre certificação de origem e rastreabilidade se faz necessária. A cadeia produtiva precisa ser informada sobre o que dela é, efetivamente, exigido pelos compradores e quais os documentos que estabelecem estas exigências. Com isto, evitaríamos declarações com a citação de documentos da Comunidade Européia os quais estabeleceriam, por exemplo, a não exigência da identificação individual do animal. Para que esta afirmação seja verdadeira, o artigo terceiro do Regulamento (EC) 1760/2000 teria que ser revogado e não consta que tenha sido.
O entendimento correto daquilo que vem a ser certificação e rastreabilidade precisa ser divulgado para todos. É comprometedor ouvir, de figuras importantes, declarações como: “a rastreabilidade garante a segurança alimentar e a qualidade da carne para o consumidor” e outras. O consumidor precisa saber que a rastreabilidade não garante nem a segurança alimentar e nem a qualidade do alimento.
8 – São recomendadas negociações contínuas com os importadores para a definição de novas e melhores formas de certificação da carne. Devemos procurar métodos, não somente mais seguros, mas também mais baratos e simples de serem aplicados.
Porém, é preciso que se entenda que, enquanto prevalecer a exigência da rastreabilidade, esta não poderá ser atendida somente pela certificação de propriedades. A rastreabilidade, por definição, exige a identificação individual do animal e é importante lembrar que um lote é formado por indivíduos devidamente identificados. A certificação de propriedades é altamente recomendada e sua implantação, ao lado da certificação de origem e rastreabilidade do rebanho, seria motivo de orgulho para a pecuária.
A certificação de propriedade, dependendo da propriedade, poderá não ser um processo simples, rápido e barato. A maioria das propriedades, no Brasil, teria grandes dificuldades para conseguir a certificação. O protocolo EUREPGAP, por exemplo, apresenta cerca de 118 páginas de exigências para serem cumpridas por uma propriedade para a obtenção da certificação.
9 – E por fim, em um segundo momento, se desejar algo mais sofisticado, o Brasil poderia ser pioneiro na implantação de um sistema de classificação da rastreabilidade.
Nossa definição de rastreabilidade “é a medida da competência para realizar o trabalho de reconstituição dos fatos históricos que marcaram o ciclo de vida de um produto, em todas as fases da sua cadeia produtiva”. Assim, a rastreabilidade é algo mensurável. Um sistema pode ser mais rastreável que outro.
A rastreabilidade poderia receber grau 1 ou 1:1, se permitir identificar, exatamente, o animal gerador de um corte colhido no supermercado. Teria grau 0,10 ou 1:10 se a partir de um corte, for possível identificar um lote de 10 animais dentre os quais está o animal gerador deste corte. E assim por diante. Quanto mais preciso o sistema, mais cara e complexa seria sua implantação e o preço ao comprador. Notar que aqui está inserido o conceito de lote de rastreabilidade, mas este é outro assunto.
Assim, poderíamos passar a oferecer carnes diferenciadas, não somente pela qualidade e padronização mas também pelo grau de rastreabilidade. O consumidor, pagaria pela sua exigência e receberia, em troca, um produto com alto valor agregado.
O produtor poderia escolher o grau de rastreabilidade que pretende implantar no seu rebanho e seria remunerado de acordo com a precisão oferecida, para um mercado que se mostra, cada vez mais, exigente e sofisticado. Seria como se existissem vários SISBOV´s onde o produtor, voluntariamente, escolheria aquele que mais se adequasse ao seu negócio.
A implantação dos itens analisados iria requerer uma completa reestruturação do SISBOV, executada por especialistas, a qual seria complexa e trabalhosa, mas sem dúvida, faria com que o Brasil passasse a ser o primeiro país a implantar um efetivo sistema nacional de certificação de origem e rastreabilidade, já que até hoje, nenhum país conseguiu tal feito. Excetuando alguns projetos pilotos pontuais, na Austrália, Alemanha, etc., o SISBOV, mesmo com a estrutura atual, ao nosso ver, ainda é o melhor sistema, de alcance nacional, dentre todos atualmente implantados.
Costumamos dizer que “uma exigência do consumidor não se discute, implanta-se”. Tudo indica que a certificação de produtos, especialmente alimentos, é uma exigência que veio para ficar. Precisamos deixar de perder tempo com debates sobre a necessidade ou não da certificação de origem, da rastreabilidade e da identificação individual dos animais, etc. e usar toda esta energia e competência para melhorar e implantar, com a participação de todos, um sistema que sirva de modelo para o mundo e assim justificarmos a posição de destaque que ocupamos no cenário mundial.
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1Antonio Carlos Lirani, engenheiro mecânico pela EESC-USP, curso de doutorado na Poli-USP, especialista em Tecnologia de Informação e Sistemas de Rastreabilidade, pesquisador associado da ANCP – Associação Nacional de Criadores e Pesquisadores, sócio-diretor da INTERall Informática Ltda.
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Parabéns pelo artigo. Todos sabemos das dificuldades da implantação do sistema, mas também conhecemos sua importancia devido a exigência do mercado consumidor. Por isso devemos discutir o que deve ser mudado. Mas o que é primordial é que o governo pense da mesma maneira e escute o que temos a dizer.
Espero que outros artigos como este surjam para que as ideias se esgotem e possamos propor idéias embasadas em discussões entre todos os interessados no bom decorrer da evolução da nossa pecuaria a qual estamos assistindo.
Um Abraço a todos
Olá, sou sócio de uma empresa de rastreabilidade que está em processo de transformação para uma portaria, afim de se rastrear gado, nossa visão do conceito de rastreabilidade é muito semelhante a do doutor Antonio Carlos Lirani
Acho muito importante que existam pessoas que busca o melhor pelo país e não somente lucros individuais. O artigo está de parabéns e será apresentado em minha empresa.
Grato
Simplesmente brilhante e arrazoado. Lamentável é se constatar que somente os frigorífcos estão ganhando rios de dinheiro tirados descaradamente dos produtores rurais. Sob o pretexto da rastreabilidade dos animais, que da forma que é imposta pelo SISBOV, não garante a qualidade da carne, só serviu para se pagar menos pela arroba ao já depauperado produtor, deixando para os frigoríficos um enorme lucro na operação.
Como diria o Boris, “Isto é uma vergonha!”
Foi muito bem abordado o tema principalmente no que tange a sua aplicabilidade e resultados obtidos com o sistema.
A observação do certificado de papel, em um sistema informatizado de rastreamento (o 5o tópico), foi a cereja do bolo.
Lastimo que pessoas com esta visão não tenham sido as responsáveis ou então ouvidas pelos elaboradores do sistema.