Por Angélica Simone Cravo Pereira1
A eficiência da utilização das câmaras frias é de extrema importância para toda a cadeia da carne, em especial para os frigoríficos, devido à grande necessidade de acelerar todo o processamento, além de reduzir as contaminações de microrganismos, que interferem na qualidade da carne. Dessa forma, a temperatura, em que as carcaças são submetidas, tornou-se essencialmente importante para a qualidade da carne.
A fim de encontrar a satisfação do consumidor, no que se refere ao consumo de carne bovina, a temperatura da carne deveria ser monitorada desde o processo de conservação, dependente de vários setores constituintes da cadeia (frigorífico, supermercados, consumidor) congelamento, descongelamento e finalmente, através do processo de cozimento, que depende exclusivamente da temperatura e do tempo de cozimento utilizado pelo consumidor, no preparo da carne.
Um problema associado à fase de pré-rigidez e o frio é o “encurtamento no descongelamento”, em que as carcaças, em pré-rigor congeladas rapidamente e estocadas em baixas temperaturas, desenvolvem, no momento do descongelamento, resultando em um grande encurtamento, que culmina com a redução da maciez. Porém, no Brasil, a maior porcentagem de carnes vermelhas comercializadas são resfriadas, e não congeladas. Ainda, a temperatura em que deve ser mantida a carne depende do tempo em que esta será utilizada, para sua industrialização, ou para ser destinada aos diferentes nichos de mercado. No caso de mercados locais, as temperaturas variam de 4 a 7oC. Além disso, quando transportadas a maiores distâncias, mostram-se, inclusive, mais convenientes às temperaturas de refrigeração, ou de 0ºC até -1,5oC (Pardi, et al., 2001).
O período de tempo que transcorre do abate até o estabelecimento do rigor mortis depende de vários fatores, como tipo de músculo, espécie animal e tratamento dos animais pré-abate. Ainda, a temperatura corporal exerce importante influência na velocidade de instalação do rigor, em que quanto mais elevada à temperatura, mais rápido transcorre a glicólise e a queda de pH. Outros fatores importantes são as reservas de glicogênio, no momento do abate, pois maior é a síntese de ácido láctico e a extensão de queda de pH pós-morte.
A temperatura da carcaça de animais abatidos pode apresentar diferentes modificações nas taxas de reações bioquímicas nos diferentes tecidos musculares. As reações catalisadas por enzimas nos músculos são particularmente sensíveis. Além disso, diferenças na temperatura de 10oC podem alterar todo o processo de mudanças dessas reações. Em conseqüência, há uma gradativa redução da temperatura muscular, pós-morte, a fim de minimizar a desnaturação das proteínas e inibir o crescimento de microrganismos, responsáveis pela contaminação da carne. Dessa forma, reduções de temperatura do músculo extremamente rápidas podem levar a conseqüências indesejáveis para a qualidade da carne (Pardi et al., 2001).
Duas condições conhecidas como rigor de descongelamento e encurtamento pelo frio tem sido enfoque de muito estudos, como resultado de baixas temperaturas nos músculos anterior ao rigor mortis.
De acordo com Pardi et al. (2001) o rigor de descongelamento (thaw rigor) traduz-se por um tipo de rigor mortis, que se desenvolve no ato do processo de descongelamento do músculo no estado pré-rigor, podendo a contração resultar em um encurtamento físico de até 80% do comprimento inicial do músculo, porém esse grau de redução limita-se a 60%. A contração do músculo é causada por uma rápida liberação de cálcio para o sarcoplasma. Essa pode ser a causa do encurtamento dos músculos. Ainda, esse processo é acompanhado da liberação de exsudado e conseqüente endurecimento desses músculos (Judge et al., 1989). Algumas alternativas para evitar esse fenômeno, tais como, descongelamento rápido, poderiam minimizar o movimento do fluxo de sal, dentro dos espaços intercelulares. Além disso, o congelamento das carnes somente após ter atingido o rigor pleno seria outra forma de prevenção do rigor de descongelamento.
Por outro lado, temperaturas dos músculos superiores a 0oC, antes do processo de rigor, porém com temperaturas abaixo de 15 a 16oC, resultam em um fenômeno denominado “encurtamento pelo frio” (cold shortening). Esse fenômeno foi descoberto por Bendall (1951) e demonstrado por Locker & Haygard em 1963.
De acordo com Luchiari (2000) e Hanna (2001) carcaças, que atingissem durante o resfriamento temperaturas inferiores a 10oC no centro do músculo do coxão mole, em tempo inferior a 10 horas, poderiam apresentar este encurtamento. A queda rápida da temperatura pós-morte, ainda no estado pré-rigor acarreta em um aumento na concentração de cálcio no sarcoplasma, ao redor de 30 a 40 vezes a concentração de íons em torno das miofibrilas. Em contrapartida, o encurtamento pelo frio não ocorre em músculos suficientemente providos de oxigênio. Assim, supõe-se, que o maior número de mitocôndrias presentes em fibras vermelhas, em relação às brancas tenha essa relação com o encurtamento. Em condições anaeróbicas, pós-morte, os íons cálcio procedentes das mitocôndrias e do retículo sarcoplasmático, se acumulam no sarcoplasma devido à bomba de cálcio perder a capacidade para reter os íons cálcio liberados a baixas temperaturas. Além disso, a relação é inversamente proporcional à maciez dos músculos e carnes endurecidas por encurtamento pelo frio não sofrem os efeitos do processo de maturação.
De acordo com Luchiari (2000) fibras vermelhas são mais suscetíveis ao encurtamento celular. Além disso, músculos, que sofreram encurtamento celular podem ter a maciez reduzida 4 a 5 vezes. Carcaças pequenas e /ou com pouca cobertura de gordura, câmaras de resfriamento com temperaturas muito baixas e/ou com altas velocidades de resfriamento são alguns fatores que aumentam a incidência de encurtamento pelo frio.
Segundo Forrest et al. (1979) a causa está relacionada à liberação de íons de cálcio e rigidez muscular. Em bovinos, este processo perdura de 6 a 12 horas, em bovinos e ovinos. Já em suínos é de aproximadamente 15 minutos e em aves, entre 5 minutos a 1 hora.
Sob o ponto de vista de sanidade, a carne deve ser resfriada logo após o abate. Porém, essa taxa de resfriamento é crítica, pois dependendo da temperatura em que a carcaça é submetida, pode acarretar em redução da qualidade. Muitos pesquisadores têm sugerido, que o resfriamento rápido da carcaça resulta em qualidade superior da carne. Ainda, baixas temperaturas, obtidas por resfriamento rápido, levam à considerável liberação de cálcio do retículo sarcoplasmático, para as miofibrilas, logo após o período pós-morte (Van Moeseke et al.,2001). A hipótese é que o suprimento de cálcio livre de forma antecipada em adição com o pH elevado poderia resultar em um aumento da ativação das calpaínas, portanto uma intensa maciez seria produzida, superando a dureza causada pelo “cold shortening” (encurtamento pelo frio).
Muitos estudos indicam que a maciez da carne é negativamente afetada quando o músculo é submetido a temperaturas abaixo de 25oC. Isto está relacionado à rápida queda da atividade das calpaínas, em especial a m-calpaína, que é instável, em condições pós-morte e elevadas temperaturas. Além disso, há observações, de que, abaixo das condições ideais de pH, a calpaína autolisada perde esta atividade a 37oC, devido à instabilidade termodinâmica da enzima. Portanto, a ativação e a autólise da m-calpaína relacionada com músculos com temperaturas elevadas altera negativamente a atividade desses músculos pós-morte. A hipótese sugere ainda, que há uma temperatura ideal no início do rigor mortis para a maciez. Estes autores observaram maiores valores de temperatura na glicólise pós-morte e como resultado, um aumento do cálcio intracelular, suficiente para ativar a m-calpaína, foi observado no estágio inicial de incubação com aumento da temperatura (Geesink et al. 2000).
Além disso, de acordo com os mesmos autores, a temperatura no início do rigor, em torno de 15oC, parece ideal, para maximizar a maciez, pois minimiza o encurtamento durante o rigor, além de não alterar os efeitos da proteólise pós-morte, durante o processo de armazenagem da carne. Amostras submetidas a 1 dia de maturação e incubadas a 15oC, poderiam ainda maximizar a maciez da carne e minimizar o encurtamento, durante o rigor, além de não alterar de modo negativo os efeitos da proteólise pós-morte, durante o processo de armazenagem da carne. No dia 1, as amostras incubadas a 15oC tenderam serem mais macias, que às demais. Esses dados obtidos em ovinos, concordaram com os mesmos encontrados por Locker e HagYard (1963), em que o encurtamento dos músculos foi mínimo a 15oC e um evidente encurtamento pelo calor foi encontrado em músculos submetidos à temperatura de 35oC. Entretanto, esses autores não observaram encurtamento pelo frio em músculos encubados a 5oC.
Por outro lado, Eilers et al. (1996), observaram, que em geral, a mensuração da temperatura ainda não está claramente associada à maciez da carne. A única correlação significante entre características de maciez e medida de temperatura foi observada no músculo Gluteus medius. A temperatura do músculo Longissimus, 3 horas pós-morte, foi positivamente correlacionada com a força de cisalhamento do Gluteus medius e negativamente correlacionada com o painel sensorial do mesmo músculo.
Posteriormente, King et al. (2003) submeteram os músculos Longissimus thoracis e Triceps brachii (paleta) a um rápido congelamento a fim de induzir o encurtamento pelo frio e observaram que esses músculos apresentaram maiores valores de força de cisalhamento, enquanto os músculos submetidos à maturação por 14 dias apresentaram menores valores, resultando em carnes mais macias. Ainda, o cozimento lento dos bifes do m. Tríceps brachii e Longissimus resultou em carnes mais macias, que o processo rápido de cozimento.
Dentre os fatores, que alteram a qualidade da carne, a temperatura atua de forma direta em todos os níveis do processo, desde o armazenamento, até a conservação, distribuição e cozimento da carne.
Embora, as condições de processamento possam ser específicas, tais como, resfriamento correto e o período de maturação, podem resultar em graus específicos de maciez. Porém, são necessárias ainda muitas pesquisas nesta área. Nesse contexto, o grau de encurtamento e a alteração das enzimas têm influência direta nos processos de maciez da carne.
Referências bibliográficas
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1Angélica Simone Cravo Pereira é doutoranda da FZEA-USP e atua no Laboratório de Tecnologia de Alimentos.