Ciro Fernando Assis Siqueira1
Recentemente uma emissora de televisão trouxe à baila um assunto surpreendente e inusitado à maioria do povo brasileiro, seja citadino ou campesino. Em pleno horário nobre exibiu, em destaque, uma reportagem onde mostrava que, mais de cem anos depois da abolição da escravatura, esse sistema desumano de trabalho ainda ocorre em algumas regiões do país; e ainda, como se não bastasse, num arroubo retórico, aproveitando o fato de o principal responsável pela coerção desse tipo de abuso ser uma mulher, apressou-se em denominá-la “princesa Isabel”.
A referida reportagem mostrou, com detalhes, como funciona o esquema dos “gatos1” que apanham trabalhadores nas pensões das cidades, pagam suas despesas com hospedagem e alimentação (já que são estabelecimentos privados e não albergues públicos) e anotam no livro conta corrente, inclusive mostrado na reportagem, o débito; tentando, o repórter, fazer um alusão ao antigo sistema de aviamento utilizado para sojigar seringueiros nos idos e áureos tempos da borracha.
Mostrou também uma fiscalização do Ministério de Trabalho junto com a Polícia Federal em uma fazenda no sul do estado do Pará que resultou na “libertação” de um sem número de “escravos” por uma “princesa Isabel” inchada e orgulhosa do seu trabalho honroso. De quebra ainda, a batida resultou na prisão de um pobre e assustado “cuca2“, acusado de porte ilegal de uma arma que, é de se supor, não era dele e por formação de quadrilha. Saiu, em bom peonês3, com as “pulseiras-do-roberto-carlos4” do pé da “trempe5” para o “xilindró6“, onde deve estar até hoje, sem saber porque cargas d´água foi parar lá.
J.R.R.Tolkien foi prodigioso ao inserir no meio de suas obras a seguinte máxima: “…diante de olhos tortos, a verdade tem o rosto desfigurado…”.
Não é intenção das ironias desse texto induzir ao raciocínio de que o trabalho escravo não existe no Brasil. Ele existe pontualmente, e deve ser coibido com energia. As ironias desse texto são reações do autor à estupidez do repórter, estampada na tentativa torpe de transformar em geral o que é particular, se utilizando, para isso, de um exemplo que, não fosse o poder que a televisão tem de desfigura a verdade diante dos olhos tortos da estultice humana, seria inútil.
O sistema de trabalho visto na reportagem não é aviamento, muito menos escravidão; no entanto, como os citados, é ilegal, já que não se enquadra na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Este fato dá razão a ambas as partes expostas na reportagem. Dos envolvidos na mesma os únicos errados, com ciência ou por ignorância (mais provável), eram os responsáveis pela realização do engodo, ou reportagem, se preferirem.
Qualquer ser humano digno de epíteto sapiens, que já tenha visto um vaca (do gênero Bos, não do gênero Homo) sem o auxílio dos vidros das televisões (onde as do gênero Homo costumam ser mais freqüentes) reconhece aquele sistema de trabalho. Isso, por um motivo muito simples: ele ocorre, arrisco-me a afirmar, em mais de 90% das propriedades rurais do Brasil. Isso significa dizer que mais de 90% das propriedades rurais brasileiras encontram-se a margem da lei.
Viva o Brasil!
Cabe o questionamento, por que razão isto ocorre?, por que motivo, para se produzir no Brasil é necessário ser marginal?
Ora, a CLT foi criada em um contexto em que a produção do setor agrícola tinha como único alvo o mercado interno, com todas as suas peculiaridades, inclusive a indiferença quanto a regulamentação trabalhista, por exemplo, e com o objetivo de regulamentar o trabalho e assegurar direitos aos trabalhadores da indústria, crescente à época.
Entretanto, no setor secundário efeitos sazonais normais são parcialmente controlados e efeitos climáticos e bióticos praticamente não existem. É uma insensatez tentar aplicar a um setor peculiar, que sofre efeitos (logísticos, climáticos, bióticos, etc.) e sazonalidades completamente diversos dos da indústria, as mesmas leis.
Não faz parte das ferramentas de manejo do produtor pedir que suas vacas dêem cria somente em dias úteis e em horário comercial. Fatores bióticos como esses são incontroláveis. A sazonalidade climática impõe às propriedades rurais épocas em que há mais trabalho que em outras. É comum proprietários rurais, constrangidos por leis tolas, manterem em suas fazendas mão-de-obra especializada sobrecarregada em alguns meses e completamente ociosa no restante. Fato que gera um série de conflitos interpessoais que perturbam o cotidiano da propriedade.
Isso sem mencionar o fato de os trabalhadores rurais, diferentemente dos urbanos, por questão logística, comumente residirem na propriedade, muitas vezes com mais infra-estrutura (energia-elétrica, água encanada, etc.) do que o Estado proporciona nas cidades, isso sem nenhum ônus aos trabalhadores.
Fatores como esses e outros precisam ser considerados.
O contexto mundial atual diverge completamente daquele em que a CLT foi criada. Inflamado por brados presidenciais do tipo: “exportar ou morrer!” e mormente por um taxa de câmbio favorável o setor primário orienta-se para o mercado externo com todas as suas peculiaridades, inclusive imposições como regulamentações trabalhistas e ambientais.
Fala-se coincidentemente agora em flexibilização da CLT mas o foco continua sendo o mesmo, a indústria. O setor primário, mais especificamente o agropecuário, precisa de leis trabalhistas próprias, que levem em consideração os fatores que não afetam o setor secundário, para o qual as leis existentes foram idealizadas.
Não está se propondo a retirada de direitos, ao contrário, o texto alerta para a necessidade urgente do enquadramento de todo um setor em uma legislação adequada a ambas as partes que são, diga-se de passagem, interdependentes, sob pena de termos que conviver com o que o nosso infeliz repórter tentou equivocadamente estereotipar como trabalho escravo.
A falta de regras adequadas para o setor é nociva a todos. Aos trabalhadores que não têm seus direitos assegurados, aos produtores que se submetem ao risco de serem taxados, em cadeia nacional, por um repórter néscio de escravocratas criminosos e, em última instância à União e ao povo, na medida em que, devastadores de florestas que escravizam seus trabalhadores não têm acesso a mercados globalizados.
E o infeliz “cuca”, “boi-de-piranha7“, deve estar preso até agora.
E a nossa princesa Isabel, com o ego massageado, deve estar sentada alhures, orgulhosa, crente que é a heroína dos fracos e oprimidos. A estupidez é, realmente, uma bem-aventurança.
1 – o autor é engenheiro agrônomo
______________________________________
1 Chefes de turma;
2 cozinheiro;
3 neologismo do autor para se referir a linguagem peculiar dos peões;
4 algemas;
5 fogão rústico;
6 cadeia;
7 mesmo que bode espiatório