Um apagão sanitário

A pecuária vive hoje o mesmo tipo de tumulto que afeta o transporte aéreo. O importante crescimento das exportações criou demandas e agravou problemas, expondo a política pública de investimentos reduzidos e, mais do que isso, de gestão incompetente. Felizmente, os acidentes da pecuária têm efeito unicamente econômico, não causando vítimas humanas.

A pecuária vive hoje o mesmo tipo de tumulto que afeta o transporte aéreo. O importante crescimento das exportações criou demandas e agravou problemas, expondo a política pública de investimentos reduzidos e, mais do que isso, de gestão incompetente. Felizmente, os acidentes da pecuária têm efeito unicamente econômico, não causando vítimas humanas.

A decisão da União Européia de restringir o acesso da carne bovina não deveria causar surpresa. É resultado de uma série de missões de auditoria na política pública do setor onde os problemas identificados e as ausências de solução se repetiram. A credibilidade do Brasil se esvaiu.

A restrição agora imposta representa, além do econômico, importante retrocesso político. Fica mais uma vez evidente a deterioração da credibilidade dos interlocutores brasileiros. Não barra totalmente o comércio, deixando espaço para nos organizarmos.

Há dois anos, um foco de febre aftosa no município de Eldorado, no Mato Grosso do Sul, expôs a fragilidade do controle sanitário. Identificado com atraso, mostrou que a região tinha pouco controle sanitário sobre o rebanho. Administrado de maneira atabalhoada, para não usar a palavra irresponsável, pelos governos federal e estadual, reduziu a confiança na qualidade da carne exportada. Hoje, após longos meses, a credibilidade está em reconstrução com o apoio e orientação da Organização Internacional de Saúde Animal (OIE).

Passou da hora de erradicarmos a febre aftosa. Progredimos muito nos anos 90. Infelizmente, nos últimos dez anos, quase que ano sim, ano não, enfrentamos o aparecimento de novo foco do vírus, caracterizando não a inevitabilidade de um acidente sanitário, mas a ausência de serviços públicos de vigilância sanitária competentes.

Erradicar a febre aftosa não apresenta segredo. É repetir o que já fizemos: vacinar, controlar o rebanho e o trânsito de animais, punir os que não cumprem as regras. Simples, porém exige um serviço público eficiente só conseguido quando a sociedade, pecuaristas e frigoríficos se mobilizam, pressionando os governos na direção correta. Repito: já fizemos isto para chegar onde estamos, têm faltado persistência e estabilidade de ações.

No Sisbov, sistema oficial que pretende fornecer informações na chamada rastreabilidade sobre o processo produtivo da carne, o fracasso é praticamente total. Imposto pela União Européia como restrição para atingir seu mercado, foi idealizado aqui como cópia do sistema implantado naquele continente sob o impacto da síndrome espongiforme bovina, a doença da vaca louca, inexistente no Brasil. Um brinco e um documento de papel individual por animal tem a pretensão de algum dia informar a origem da carne.

Esta exigência é desprovida de consistência técnica para o nosso país. Talvez tivesse que ser introduzida, pois a história tem mostrado a dificuldade em debater restrições comerciais mesmo sem validade científica e, portanto em desacordo com a Organização Mundial de Comércio. Aceitamos, porém a descabida exigência sem qualquer negociação.

A implantação do Sisbov foi um desastre. No início pretendeu, através da aprovação de apenas algumas poucas entidades certificadoras, garantir uma reserva de mercado para o serviço burocrático de controlar brincos, mais do que animais. Faltando credibilidade ao sistema, acabou não sendo levado a sério por pecuaristas ou frigoríficos.

Desmontada a reserva de mercado com a aprovação de dezenas de entidades certificadoras, faltou exigir e auditar a qualidade do serviço de controle de brincos e rebanho.

Condenado seguidamente pelas auditorias da União Européia, foi alterado e reapresentado. Também este novo modelo não construiu sua credibilidade pela incompetência e omissão do setor público e privado envolvido. A última auditoria da União Européia teria identificado problemas sérios, motivando a atual decisão.

A importância da pecuária exige reação. Os erros cometidos nesses seis desastrosos anos de Sisbov fornecem algumas lições:

• A certificação e rastreabilidade de produtos é uma tendência para consumidores de alta renda. Um princípio fundamental é que o consumidor que exige a certificação precisa pagar pelo seu custo. Não pode representar ônus para o produtor.
• A identificação individual de bovinos é um processo burocrático dispendioso. No Brasil, identificação individual não é exigência sanitária para nosso consumidor. A implantação do Sisbov precisa, portanto, induzir que o mercado europeu pague pela exigência.
• Insistir em obrigar o produtor a assumir este custo adicional não vai funcionar. É essencial segmentar o mercado, incentivando produtores que queiram acrescentar a certificação individual ao processo produtivo. Assim tem sido em todos os outros exemplos de certificação por características de qualidade. Esperamos que os frigoríficos tenham aprendido a lição.
• O pecuarista precisa passar a participar do processo com maior competência. Um eventual embargo e perda maior de mercado terá conseqüências desastrosas. É ele quem vai pagar esta conta. É medíocre o debate existente entre as entidades do setor sobre quem deve, eventualmente, assumir no futuro o banco de dados desse Sisbov. Essa disputa ignora a real necessidade do setor.
• O governo federal precisa, antes de tudo, avaliar os erros cometidos, promovendo alterações não só organizacionais, mas principalmente de governança e responsabilidade. Errar como erraram é inaceitável. Aguardar a punição vir do exterior é lamentável.

O Brasil tornou-se o maior exportador em volume de carne bovina em poucos anos. Não participa, porém, em ainda cerca de 60% do mercado internacional, basicamente em função do descontrole sanitário. O potencial está aí para ser conquistado. Está na hora de assumirmos a responsabilidade de líder e colocar ordem na casa.

0 Comments

  1. Maria Stella Beregeno Lemos de Melo Saab disse:

    O Sr. Pedro Camargo tocou no ponto chave da questão: é preciso segmentar o mercado. Impor um custo a mais a todos é no mínimo irracional. Existe um mercado que exige a certificação e a rastreabilidade e aceita pagar por isto, como existe o mercado que paga pela carne orgânica, pela carne de tal raça, etc.

    Mas não podemos esquecer que existe também um grande mercado que não se importa com isto e não quer pagar por isto. E aí o produtor tem que poder escolher se quer atender a um ou a outro mercado e ter os custos que esse mercado exige e aceita pagar.

    Arcar com os custos da rastreabilidade para vender a mercados que querem preço é simplesmente aumentar o custo para o produtor e desincentivá-lo a continuar com a pecuária. Não se discute que a tecnificação e preocupação com sanidade são vitais e gerais para todo o setor.

    Mas o pecuarista tem que ter o direito de escolher como fazê-las, adaptadas ao seu particular meio de produção. E arcar com os prejuízos ou lucros da sua decisão.

  2. Jogi Humberto Oshiai disse:

    Nota 10 Pedro! Vale recordar que a perda da credibilidade institucional pesa também no processo de habilitação de carne suína para o mercado comunitário.

    As garantias são sempre oferecidas pelo mesmo Ministério!

    Forte abraço,
    Jogi

  3. Louis Pascal de Geer disse:

    Gostei do artigo do Pedro Camargo Neto e quero fazer algumas observações para ajudar focalizar o rumo que temos que tomar.

    1. Segmentação do mercado e produtos só funciona quando são reconhecidos e aceitos pelos elos da cadeia e o consumidor final, e quando são certificadas e auditadas pelos instituições credenciadas.

    2. O mercado europeu, pelo que sei, já está pagando um enorme sobre preço justamente para compensar as exigências deles; o problema é que os produtores fornecedores da matéria prima recebem muito pouco deste adicional.

    3. Para mim temos que repensar o presente, usar experiências do passado tanto as positivas, como o Fundepec, ou as que ainda estão patinando como a SisBov e desenhar juntos o modelo que queremos implantar e seguir.

    4. O papel do governo, no meu ver, é de normatizar após uma ampla discussão, fiscalizar e punir quando necessário, mas infelizmente aí ainda entramos em um campo minado de abusos e corrupção. Mesmo assim temos que fazer isto e cada um pode ajudar em prol da pecuária brasileira.

  4. luiz longo disse:

    O problema é que os estados estão desunidos e o governo não tem força para fazer essa união, em Santa Catarina há barreiras sanitárias em todas as entradas onde se fiscaliza todos os produtos de origem animal que vão entrar no estado, esse é um exemplo que outros estados poderiam fazer, cuidar das fronteiras, principalmente com outros países.

  5. Paulo Antonio Fadil disse:

    Pedro, como sempre, seus comentários não necessitam de nenhuma observação, só gostaria de acrescentar que a maioria dos estados e o país, continuam sem controle de trânsito, sem fiscalização de alimentos (o caso do leite é só uma gota d´agua), sem fiscalização de insumos, sem fiscalização de revendas, sem fiscalização do SISBOV, sem educação sanitária, …etc, etc, etc…

    Daria para citar pelo menos 100 deficiências dos serviços oficiais, infelizmente os governantes acham que está tudo bem. Enquanto isso, continuamos convivendo com febre aftosa, raiva, brucelose, tuberculose, lingua azul, IBR, etc., comendo carnes, leite, queijos, frutas, legumes, verduras, etc., no mínimo suspeitos, pois com as deficiências de funcionários nos órgãos municipais, estaduais e federais, nunca conseguiremos chegar a lugar algum.

    Um abraço!

  6. Mario Ribeiro Paes Leme disse:

    Parabéns a todos os autores anteriores, pois tudo que falaram é no mínimo 90% de toda a realidade do Brasil e dos orgãos fiscalizadores.

    Como faço parte de uma fiscalização estadual, faço então este serviço inacreditável que o MAPA pediu um convênio, de fiscalizar a maior parte possível de ERAs –
    do Estado de Goiás.

    Para encurtar a conversa, pegamos também um período chuvoso, e necessário, que mais ainda atrapalhou o desenrolar das vistorias.

    De todo modo ainda existe quem quer realmente fazer o SISBOV, e certo. Isto já é por si mesmo uma gratificante novidade para nos técnicos e consumidores.

    Um abraço

  7. dirceu fernandes disse:

    Sisbov – de quem é o erro, afinal de contas? De quem é a responsabilidade do erro? Faço a rastreabilidade de meu gado desde 2002, toda hora mudam as normas, será
    que normas mudam a qualidade da carne?

    Nós somos os melhores produtores de carne bovina do globo terrestre, nunca tivemos problema de carne contaminadas, principalmente para exportação. Caso venha realmente ocorrer definitivamente esta inaceitável descisão da “UE”, estarei absolutamente convencido que a UE tem normas e decisões errôneas. E por outro lado, fico feliz que também lá existem indivíduos incompetentes como aqui, ou eles viram o volume de fazendas capacitadas em fornecer a melhor carne a eles e arrumaram uma maneira de não assumirem a parte deles que é o minimo, só comprar!

    Nestas indecisões fica novamente o prejudicado o “pecuarista” que bancou até o último com as despesas, nesta hora nem governo, nem irresponsáveis, nem comunidade européia, nem frigoríficos que exigiram o máximo do pecuarista, assumem a responsabilidade.

    Está na hora, antes de qualquer norma ser exigida, que tenham os responsáveis pelas mesmas maior competência. O problema do Brasil sempre foi o mesmo, aceitar qualquer imposição e baixar a cabeça como carneirinho.

    Tenho certeza que se valorizarmos um pouco mais o que sabemos fazer, teremos maiores resultados. Vamos deixar de ser capachos! Somos os melhores, vamos nós pressionar e não ser pressionados.

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