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A epidemia da vaca louca (parte 2)

Por João Carlos de Campos Pimentel1

As encefalopatias espongiformes transmissíveis animais e humanas

No primeiro artigo, ficamos sabendo que, em março de 1996, o governo da Grã-Bretanha reconheceu que era extremamente provável que a Doença da Vaca Louca (BSE) pudesse estar sendo transmitida para pessoas através do consumo de produtos de origem bovina. Em conseqüência desse reconhecimento, o consumo de carne bovina despencou fortemente no Reino Unido. Mas o consumo despencou também na Europa, pois muitos países europeus importavam carne bovina do Reino Unido.

Uma das maneiras de entender o medo que causou essa “fuga ao produto” é obter mais informações sobre as TSE, sigla inglesa para as diversas encefalopatias espongiformes transmissíveis, animais e humanas. Neste artigo vamos ver algumas coisas básicas sobre as principais TSE, como por exemplo, os sinais que elas provocam nas pessoas afetadas e a razão pela qual são chamadas de “espongiformes”. Também veremos como ter uma idéia do risco de aquisição de uma doença através da medida de sua incidência. Por esta razão, daremos uma olhada na incidência na população brasileira de uma doença bem conhecida, a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS).

Informações básicas sobre a alteração espongiforme

O Sistema Nervoso Central (SNC), dos homens e dos animais, é um conjunto de órgãos encarregado de processar informações vindas não apenas do exterior, mas também do interior do organismo. Seus principais órgãos são o cérebro, o cerebelo, a medula espinhal e o tronco cerebral, como é chamada a região de transição entre o início da medula espinhal e o cérebro. O SNC contém bilhões de neurônios, células com mais centenas de ramificações chamadas de dendritos e uma principal, chamada de axônio, além de um corpo celular. Contém também as células de um tecido chamado “glia”, especializado em “suportar”, apoiar, alimentar e proteger os neurônios.

Ao exame microscópico de fatias muito finas do cérebro, cerebelo e tronco cerebral de pacientes humanos e animais de TSE podemos ver lesões na forma de aglomerados de vacúolos de 10 a 30 µm de diâmetro (1 µm é a milésima parte do milímetro). Outras técnicas mostram que dentro desses vacúolos existem depósitos de uma proteína conhecida como “amilóide”. Esses vacúolos esbranquiçados, disseminados por entre células arroxeadas presentes na fatia, sugerem uma forte semelhança com os “buracos” de uma esponja de banho. A esta imagem, obtida com a análise de pequenos pedaços de cérebro, damos o nome de “alteração espongiforme”. Talvez porque também lembrem ramalhetes de flores, alguns pesquisadores também dão a essas imagens o nome de “placas floridas”. Esta imagem é a que fornece um diagnóstico definitivo de que o ser humano ou o animal em questão adquiriu uma TSE. Mas não é só esta imagem que é igual para todas as TSE. Em todos os seres humanos ou animais cujos exames “são positivos” para esta imagem, também podem ser encontrados prions patogênicos.

Se você quiser conhecer esta imagem e compará-la com a de uma imagem de um cérebro normal, acesse a seguinte página: http://www.inprobiotech.com/prion/index.html. Você vai acessar a empresa de Stanley Prusiner, professor do departamento de Neuropatologia da Universidade da Califórnia e um dos pesquisadores mais conhecidos na área de doenças causadas por prions.

Informações básicas sobre o prion

Pesquisadores mostraram a existência de uma proteína que ocorre nas membranas das células de animais, plantas e leveduras. Eles a batizaram de Proteína Prion (PrP). Os neurônios, as células nervosas dos animais, são especialmente ricos dela.

Nos neurônios existem duas formas – no sentido de “configuração espacial” ou “conformação” – dessa proteína. No entanto, ambas possuem a mesma seqüência de aminoácidos. Isto é, embora possuam a mesma estrutura primária (que é dada pela seqüência de aminoácidos), suas estruturas secundárias são totalmente diferentes entre si. Até recentemente, a uma dada estrutura primária, correspondia uma dada estrutura secundária. Ou seja, a estrutura secundária também dependia da seqüência de aminoácidos. No caso da PrP, uma mesma estrutura primária pode determinar duas estruturas secundárias diferentes. Esta afirmação entre cientistas representava, até recentemente, mais ou menos o mesmo que dizer que o Corinthians e o Palmeiras vão se fundir num único clube, aqui em São Paulo. Muita discordância, para dizer o mínimo…

A primeira configuração da PrP é a configuração normal (abreviada PrPC) e encontrada em seres humanos e animais sadios. A segunda configuração da PrP é o prion patogênico e é abreviada PrPSC. Esta forma é encontrada no SNC das pessoas e animais que sofrem de encefalopatias espongiformes.

A configuração normal – a PrPC – é uma proteína muito solúvel em água e parece estar ligada a processos fisiológicos que resultam no crescimento e na atividade funcional dos neurônios. Mas o que faz essa proteína normal? A formação e manutenção da atividade mental que conhecemos como memória, a capacidade de resistir a estímulos que causam tremores e convulsões e a proteção de células nervosas da retina contra a morte celular programada (conhecida como apoptose) são algumas das funções relacionadas à configuração normal, a PrPC. Mas ela pode ter outras, pois recentemente, um pesquisador constatou que a forma alterada da proteína também pode ser encontrada nos músculos de animais afetados pelas TSE.

O mecanismo patogênico postulado para algumas TSE é que ocorre uma alteração espontânea da proteína normal PrPCesporadicamente, a uma taxa de cerca de uma pessoa para cada milhão de pessoas por ano. A PrPC se transforma, dessa maneira, na forma patogênica, o prion PrPSC.

É importante notar que, para essas TSE esporádicas, essa mudança ocorre na proteína já formada e atuando em seu local de atividade fisiológica (ou dentro das células ou ancorada a suas membranas plasmáticas). Não é uma mutação que ocorre no gene que codifica a proteína; mas sim na própria proteína, após ela já ter sido formada e estar desempenhando seu papel! Esta afirmação também resultava em tiroteio entre cientistas!

Mas existe outra afirmação ainda mais controversa nessa teoria. A proteína modificada recém aparecida em um cérebro animal ou humano tem a capacidade de, por contato, obrigar as proteínas normais já existentes nas células cerebrais a tomar sua forma. Ou seja, ela transforma, como na lenda do vampiro da literatura de terror, as proteínas normais em cópias dela mesmo. E estas cópias são tão perigosas quanto a original para a saúde do indivíduo. Assim a reação em cadeia que acontece dentro do SNC do indivíduo acaba resultando nas doenças que conhecemos como encefalopatia espongiforme.

Existem outras TSE, de origem genética, em que ocorrem mutações nos próprios genes que codificam a PrPC (que passam a codificar o prion PrPSC). Nas TSE de origem genética, a PrPSC já “nasce alterada”, por assim dizer, do processo de síntese celular. Estas TSE, hereditárias ou familiares, são transmitidas dos pais para os filhos. Dentro destas famílias, a incidência da TSE é muito maior que na população como um todo.

Como veremos adiante, normalmente a maior parte das TSE incide de maneira esporádica nas populações humanas e animais. A seguinte tabela mostra as TSE atualmente conhecidas. Vamos analisá-las melhor, mas antes precisamos conhecer o conceito de incidência.


Informações básicas sobre a incidência das TSE

A taxa de incidência de uma doença mede o número de casos que dela aparecem, em um determinado período de tempo, em uma população (humana ou animal). Assim, a taxa de incidência dá uma idéia do risco a que estão submetidas as pessoas do grupo (ou as cabeças de um rebanho) em relação a essa doença. Calculada para as diversas doenças de interesse, ajuda a dar uma idéia do tamanho do problema sanitário da população (ou do rebanho). Um pecuarista cujo rebanho é acometido por diversas doenças, possivelmente vai querer controlar em primeiro lugar aquela que afeta maior número de animais, aquela cuja incidência é maior. O responsável por um órgão público encarregado da defesa da saúde humana, também.

As TSE – as esporádicas e as de origem genética – ocorrem em todas as populações humanas do planeta. Inclusive no Brasil, seja nas grandes, médias ou pequenas cidades. Felizmente, a incidência dessa doença nas populações humanas é extremamente baixa, da ordem de 1 caso da doença para cada milhão de pessoas por ano. Isso significa que o Brasil inteiro deve ter uns 170 casos de TSE, a cada ano. A cidade de São Paulo, com 10 milhões de habitantes, terá uns 10 casos de TSE, por ano. Uma cidade que possua cerca de 100 mil habitantes, provavelmente terá um caso dessa doença a cada 10 anos. E assim por diante. Um pecuarista que recria mil bezerros por ano poderia perder apenas um animal a cada mil anos (!) para conseguir uma incidência de 1 morte por milhão, em seu rebanho.

O risco de adquirir uma TSE é extremamente baixo se o compararmos com o risco de aquisição de outras doenças ou eventos causadores de mortes, como as normalmente enfrentadas pelas populações humanas (como malária, AIDS, tuberculose, assassinatos e acidentes etc). Vejamos o caso da AIDS, por exemplo. Atualmente, a incidência de AIDS no Brasil alcança cerca de 150 casos para cada milhão de habitantes. Como a incidência das TSE humanas situa-se em torno de um caso para cada milhão de pessoas, podemos dizer que existe no Brasil um risco cerca de 150 vezes maior de uma pessoa vir a adquirir a AIDS que de adquirir uma TSE.

Mas o que significa uma coisa ser 150 vezes maior que outra coisa? Você poderia imaginar alguma quantidade com que você está acostumado e multiplicá-la por 150. Uma casa de 5 metros, aumentada em 150 vezes, resulta em um prédio de mais de 200 andares! A gasolina passaria a valer R$ 270 por litro (e a Petrobrás compraria o resto do Brasil em três tempos…). Um trator que custa 40 mil reais, passaria a custar R$ 6 milhões. Se determinada região recriar 100 mil bezerros por ano e apenas 15 deles (!) ficarem doentes e morrerem durante esse período, mesmo assim essa taxa significará um número 150 vezes maior que a taxa de incidência de um em um milhão, típica das TSE humanas.

As relações acima apresentam a mesma ordem de variação que a relação existente entre a incidência de AIDS e a incidência das TSE humanas no Brasil. Isto é, haveria a necessidade das TSE no Brasil sofrerem um aumento de 150 vezes em sua incidência para que alcançassem níveis semelhantes ao da AIDS (também no Brasil).

Se as TSE são assim tão raras, porque então tanta preocupação?

Agora que temos uma idéia da extrema raridade com que as TSE incidem nas populações, por que então tanta preocupação dos consumidores em relação à Doença da Vaca Louca (a BSE) como causadora de uma zoonose (a VCJD)?

A resposta é que, de forma geral, as populações de países desenvolvidos estão dando cada vez mais atenção às doenças humanas como causadoras de sofrimento. Qualquer que seja a sua causa (infecciosa, parasitária, degenerativa, genética, ambiental ou social) e mesmo que sua incidência seja extremamente baixa, a maior parte dos governos desses países é levado a combater toda doença humana com bastante rigor.

Como zoonoses são causas importantes de risco à saúde humana, os sistemas de prevenção de doenças animais nos rebanhos (e no restante da cadeia de produção, pois agentes de doenças podem se instalar ou se desenvolver durante a industrialização, o transporte e o armazenamento dos alimentos de origem animal) também estão ficando mais rigorosos a cada dia que passa.

O fato é que esta atitude preventiva em relação a doenças tende a resultar em um aumento da expectativa de vida das pessoas. Esta é a razão de fundo pela qual se dá atenção a quaisquer tipos de doenças já conhecidas ou emergentes; mesmo àquelas que possuem taxas de incidência extremamente baixas, como as TSE. As pessoas simplesmente querem viver cada vez mais.

Esta é a razão da existência de sistemas de vigilância sanitária desenhados para combater doenças em todos os níveis. Na minha opinião, as pessoas pensam assim: “Eu sei que o mundo é muito perigoso. Mas pelo menos em minha casa eu encontro um refúgio seguro e em meu alimento uma fonte segura de vida e prazer. Para que correr um risco, mesmo que infinitesimal com um alimento inseguro? Eu mudo de alimento se meu alimento tradicional se mostrar perigoso!”.

Mas existe outra forte razão para se manter sistemas de vigilância epidemiológica eficientes. O fato é que a taxa de incidência extremamente baixa de uma doença não significa que ela continuará assim extremamente baixa, indefinidamente. Uma doença não combatida pode vir a aumentar fortemente sua incidência transformando-se em uma epidemia de números cada vez maiores. Basicamente, o que acontece em qualquer epidemia é que há uma “alimentação positiva” do número de novos casos. Os casos cada vez mais numerosos ajudam a criar cada vez mais casos e a epidemia avança. E aí a mortalidade aumenta…
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1João Carlos de Campos Pimentel é médico veterinário, Assistente Agropecuário IV
da CATI-SAA-SP e membro do conselho técnico da ANAPECC (antigo Sindipec).

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