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8 de abril de 2015
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A indústria de carne e o martelo de Nietzsche

Por Juliana Santin.

Recentemente, li um post em um blog de uma pessoa que criticava a atitude da Angélica por ter supostamente vendido seus princípios e valores por dinheiro ao aceitar comer salsicha no comercial da Perdigão mesmo sendo vegetariana. Isso, é claro, após uma atitude semelhante ter sido tomada pelo “rei” Roberto Carlos em um comercial da Friboi. Sem querer entrar na questão em si, ou seja, se Angélica e Roberto Carlos eram, mesmo, vegetarianos, o que mais me fez pensar quando li esse texto foi: por que o ato de não comer carne é considerado um valor moral, levando a questão para o campo da ética?

As críticas foram tão fortes nesses dois casos, justamente porque as pessoas viram como um desvio de conduta moral. Fazendo apenas uma pequena explanação sobre a moral moderna. A moral da nossa sociedade atualmente segue em grande parte a linha de pensamento do filósofo alemão, Immanuel Kant (1724-1804) que, por sua vez, apoiou-se em ideias de outro filósofo, o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).

Resumidamente, Rousseau faz uma distinção entre os homens e os animais partindo do seguinte princípio: os animais agem completamente em acordo com a sua natureza, enquanto o homem tem um instinto natural relativamente fraco e possui liberdade para agir como queira, independentemente de sua natureza.

É como se os animais fossem “escravos” de seus instintos naturais e os homens livres, porque podem deliberar contra seus desejos e apetites naturais. Kant aprimorou a ideia de Rousseau em sua filosofia moral e destacou entre diversas outras coisas justamente essa liberdade que o homem tem de descolar suas ações de seus instintos naturais. Então, para ele, o homem é livre justamente porque pode fazer o que não deseja instintivamente.

É baseado exatamente nisso que existem, por exemplo, julgamentos de atitudes humanas consideradas moralmente indignas e sujeitas a penalidades. Julga-se a atitude de um sujeito porque parte-se do princípio de que ele poderia ter agido diferente. Caso contrário, não haveria porque julgar. Por exemplo, um homem que espanca uma criança, porque ficou com uma raiva descontrolada pode ser julgado por suas atitudes porque ele poderia perfeitamente – e deveria, segundo a ética que rege a sociedade – ter ignorado seu instinto mais primitivo e deliberado por não agredir a criança – ainda que ele estivesse realmente desejando fazer isso devido a um ataque de ira.

O mesmo não pode ser dito de um animal. Ninguém ousaria colocar um cachorro que mordeu uma criança no banco de réus. Ora, o cachorro não poderia ter agido de outra forma, porque ele não tem liberdade para agir em sentido contrário aos seus instintos e todos sabem disso. O homem, tem. Por isso, pode ser julgado por suas ações.

Dito isso, volto à questão central desse texto: por que comer carne é uma questão ética?

Acho válido fazer uma observação aqui: é importante entender nesse texto que ética não é uma tabela com determinadas condutas, separadas em duas colunas: certo e errado, pré-determinadas e imutáveis. A ética é o esforço coletivo de busca de uma melhor convivência em sociedade e os valores que compõem a suposta “tabela” não são fixos. Por que? Porque nos deparamos dia a dia com situações inéditas. Porque um valor pode ser adequado em uma situação e inadequado em outra. Porque um fato, como por exemplo, a divulgação de um vídeo de maus-tratos com animais pode abalar a indústria, assim como uma nova pesquisa científica sobre algum nutriente da carne.

Os valores que norteiam a ética não são fixos, e, por isso, não pode-se valer sempre do argumento de: comer carne é ético, porque sempre comemos. Ou: comer carne é ético, porque ajudou no desenvolvimento do cérebro.  Então, a questão é: hoje, com as informações sobre os animais que temos, com o desenvolvimento tecnológico, com a crise ambiental, com o aumento populacional, qual a ética que envolve o consumo de carne?

A primeira coisa que nos vem à cabeça quando falamos de ética de consumo de carne é a questão da causa animal. Essa é uma questão bastante complexa e deve ser considerada com bastante cautela e respeito.

Acho válido compreendermos o seguinte: quando se argumenta que o homem come carne, por uma questão de cadeia alimentar – argumento usado extensivamente pelos defensores do consumo de carne -, o argumento contrário é o mesmo de Rousseau: você é humano e pode deliberar contra sua natureza comedora de carne. Nós só podemos ponderar racionalmente sobre o consumo de carne porque somos humanos. Se não tivéssemos essa liberdade, comeríamos carne e nem saberíamos disso. Seria puro instinto.

Então, isso mostra que, sim, há uma diferença entre homens e animais. Isso dá ao homem o direito de comer animais, então? Claro que não. Isso dá apenas às pessoas a capacidade de pensar e decidir se querem ou não comer animais. O que leva uma pessoa a comer ou não um animal depende de seus próprios valores. As pessoas têm seus próprios valores e eles dependem de uma série complexa de variáveis. Esses valores não são universalizáveis.

Isso quer dizer que a indústria de carne não pode querer impor a todos que comer carne é ético, nem tampouco o contrário pode acontecer. As pessoas que não comem carne têm esse direito, porque seguem seus valores. As pessoas que comem, também. De qualquer maneira, uma discussão sobre ética de consumo de carne sempre deve ser racional e respeitosa. A indústria de carne pode e deve estar preparada para justamente argumentar em favor do consumo.

Agora, além do grupo da causa animal, há o que considero ainda mais prejudicial à indústria de carne e que deve ser observado com atenção. Trata-se principalmente das ideias do senso comum sobre o consumo de carne, ou seja, aquelas ideias disseminadas amplamente e que se ouve da boca de quase todo mundo. Essas ideias também têm um fundo ético, mas são, em sua maioria, fundamentadas em informações erradas e é justamente aí que está o problema. Quais são essas ideias? Creio que as principais dizem respeito a:

a) Qualidade nutricional da carne vermelha. Há uma ideia generalizada de que carne vermelha faz mal à saúde. Ninguém sabe direito dizer porque, mas o fato é que o que não falta é artista, modelo, pessoas famosas dizendo aos quatro ventos e com muito orgulho que cortou a carne vermelha da dieta.

b) Uso de antibióticos, hormônios e outras substâncias químicas que podem prejudicar a saúde de quem consome a carne. Essa também é uma ideia amplamente disseminada pelo senso comum e muitas pessoas acham que a carne é cheia de substâncias químicas deletérias, usadas a torto e a direito pelos pecuaristas para encher seus bolsos de dinheiro, pouco se importando com a saúde do consumidor.

c) O maltrato dos animais. Mais uma ideia que a maioria das pessoas compartilha, de que os animais são muito maltratados nas fazendas e nos abatedouros, que há muito desrespeito ao bem-estar dos animais na produção pecuária.

d) A questão ambiental. Essa é uma questão também bastante discutida e que veio à tona recentemente com força total por causa da crise hídrica. Muitas pessoas afirmam categoricamente que o agronegócio é o grande vilão da natureza.

Ora, não é preciso nem pensar muito para contra-argumentarmos todas essas questões com base em nossa experiência e conhecimento técnico/científico. Para as pessoas do setor, essas ideias são totalmente discutíveis. É aí que entra o martelo de Nietzsche do título do artigo.

Friedrich Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo alemão, conhecido por sua filosofia da desconstrução. Ele propunha justamente a desconstrução de ideias pré-formadas e uma nova visão de mundo. Eu não vou entrar em detalhes sobre as complexas ideias de Nietzsche e quais eram os paradigmas que ele mais combatia. Vou apenas usar a expressão que ele usava que é exatamente a de martelar todas as ideias pré-formadas e pensar ideias novas.

Então, eu acho que está na hora de a indústria de carne brasileira começar a martelar as ideias pré-concebidas e disseminadas sobre a indústria e ajudar a esclarecer às pessoas como as coisas realmente são. E se as coisas realmente não forem como deveriam ser em alguns aspectos, trabalhar para serem.

Então, a questão nutricional, por exemplo, já vem sendo combatida por várias pesquisas. A carne é um alimento muito rico em nutrientes e que não só pode como deve ser incluído em uma dieta saudável. Isso precisa ser divulgado. O mesmo com relação à questão de antibióticos e hormônios. É importante que as pessoas saibam como é feito o uso desse tipo de substância e quais são seus reais riscos e benefícios.

A questão do bem-estar animal é outra com um forte peso ético. Recentemente, o BeefPoint publicou um artigo da Temple Grandin em que ela fala sobre a transparência nessa questão, ou seja, agir realmente de acordo com as diretrizes de bem-estar animal e mostrar isso ao mundo de forma clara. Justamente por sermos homens e sabermos que os animais sofrem, temos a obrigação ética de tratá-los da forma mais respeitosa possível. Se um animal, ao consumir outro, não se importa com a possibilidade de sua presa sentir dor, por exemplo, o homem não. Já se sabe que os animais sentem dor, sofrem de estresse, possuem comportamento social, comunicação. A ética diante de todas essas informações é a de respeitar o bem-estar dos animais que nos servem de alimento.

Por fim, a questão ambiental segue a mesma linha. Várias pessoas refutaram com muita competência os argumentos que diziam que a agricultura e a pecuária são vilãs na crise hídrica e na emissão de gases de efeito estufa. O BeefPoint publicou vários artigos com esses argumentos. No entanto, isso tem pouco alcance junto à população em geral. É importante que as pessoas saibam que a sustentabilidade não é um encargo da agropecuária, é uma necessidade. Ora, não há agricultura nem pecuária sem água! O pecuarista não deve trabalhar de forma sustentável e eficaz em termos de uso de recursos naturais porque é um sujeito bonzinho que gosta de preservar a natureza (o que daria brecha para os maus sujeitos gastarem água de forma desmedida). Deve fazer isso porque depende da natureza.

A produção sustentável é benéfica para todos – natureza e agropecuária. As pessoas que não têm contato com a produção rural não compreendem grande parte dos processos produtivos, ignorando questões, como por exemplo, do retorno da água usada na agricultura para o próprio ciclo natural. Quanto mais esclarecidas forem as pessoas, menores as chances de tirarem conclusões erradas com base em informações que a mídia, muitas vezes, divulga sem embasamento.

É necessário que as pessoas consigam ter uma visão mais ampla de todo o processo. Esses dias, uma conhecida postou no Facebook que apenas 5% do gasto de água era urbano, sendo o restante da agricultura e da indústria, dizendo que, portanto, não moveria uma palha em nome de conservar água. É importante que se saiba que não há uma separação, do tipo, indústria de um lado, agricultura do outro, e a sociedade do outro. A indústria e a agricultura existem porque existe sociedade e vice-versa. Sem agricultura os homens ainda seriam nômades. A formação da sociedade só foi possível por causa da agricultura. Tudo o que as pessoas consomem na cidade em termos de alimentos vem da agropecuária. Por mais processado que seja o alimento, ele vem da agropecuária. Somos todos, a sociedade inteira, responsáveis pelo uso sustentável e racional dos recursos naturais. Se há pontos a melhorar no uso urbano da água, no uso agrícola ou industrial, esses devem ser melhorados em nome justamente da ética. Usar recursos naturais de forma irresponsável pensando apenas em benefício próprio, desconsiderando que o uso desses recursos é coletivo é uma atitude ética? Certamente, não. Por isso, não se trata de um contra o outro, mas sim, de todos a favor do bem da maioria.

Por isso, termino esse texto com um convite a todos os membros do setor: vamos martelar as ideias equivocadas sobre a indústria da carne, trabalhando dia a dia para que a indústria se torne cada vez mais eficaz e ética e que tenha orgulho de mostrar isso de forma transparente a todos.

Por Juliana Santin, médica veterinária com especialização em ética.

9 Comments

  1. Alfredo Teixeira Louzeiro Filho disse:

    Foi um dos melhores artigos que li nos últimos anos , a chave é desconstruir mitos.

  2. Fernando Costabeber fernando costabeber disse:

    Rico, inteligente, brilhante artigo, Juliana.
    Recomendo a leitura do livro A DIETA DA MENTE, do neurocientista David Perlmutter, que aborda a evolução de nosso cérebro e sua grande necessidade de proteínas, gorduras saturadas e fundamentalmente, colesterol.

  3. Enaldo Carvalho disse:

    Parabéns a autora pelo excelente texto.

  4. Kleber disse:

    Wow. Vamos por partes. A começar pelo título: fantástico. Baita título. Daqueles que servem ao seu mais importante papel, que é o de chamar a pessoa ao texto. Isso dito, que texto! Como assim, falar de indústria da carne, Angélica, Nietzsche, Kant e Rousseau, sem perder o sentido? Muito legal. Quanto ao mérito, deixo uma crítica à indústria: por mais que o marketing pueril, de celebridades, possa causar um impacto mais rápido e, até, maior, no mercado consumidor, a publicidade “educativa” cria mais raízes, desconstitui valores equivocados – que, às vezes, duram anos. Além disso, vale investir em mais pesquisas científicas sobre os produtos que são vendidos.

  5. Nathan Alfredo Soruco disse:

    Parabéns pelo esforço em produzir uma boa tese. E também por aprofundar o pensamento baseando-se em clássicos. No entanto, a questão não é ética. É moral. Os contratos que se faz com o próximo e consigo são geradores de expectativa de conduta. O que traz indignação da sociedade com o caso do Cantor Roberto e com o caso da atriz Angélica não é ter comido carne. É o fato de terem quebrado um contrato deles para eles mesmos justificado e propagado durante anos que é ser vegetariano por saúde em troca de dinheiro.
    Acho que tens que se dedicar ao que realmente fazes com esmero que é a medicina veterinária.

  6. ANGELO JOSUE LEONEL FERREIRA disse:

    Empolgante a abordagem inteligente e clara desenvolvida nesse artigo.
    Parabéns !

  7. GERMANO QUEIROZ disse:

    Comecemos combatendo a usurpação dos nomes. Não existe carne de soja, queijo de leite de soja, nem mesmo leite de soja. Defumado é com fumaça (daí o nome), com líquido injetado não é defumado. Leite vem de lácteo, ou seja, se não tem lactose não é leite (a não ser que a lactose foi retirada por questões nutricionais né).
    Agora que Roberto Carlos já comeu de tudo e de todos, bebeu e fumou qto e o que quis, fica pagando de santo católico vegetariano. Tipo uma Xuxa da vida.

  8. Juliana Santin disse:

    Prezado Nathan Alfredo Soruco,

    Eu escrevi no artigo que se tratava de desvio de conduta moral, como pode ver já no segundo parágrafo. De acordo com o que tive oportunidade de ouvir do professor de Ética da PUC de São Paulo e filósofo, Mario Sérgio Cortella, em uma palestra que assisti na semana passada, a ética diz respeito sempre a princípios que regem a vida em sociedade – a ética nunca é individual -, enquanto a moral é a prática desses princípios, sendo, dessa forma, individual. Por isso mesmo, a atitude de comer carne em troca de dinheiro após dizer que é vegetariano é, de fato, um desvio de conduta moral (você tem razão e eu tinha mencionado isso).

    No entanto, o que eu quis discutir nesse artigo não é a conduta dos artistas em questão, mas sim, o que considero mais importante para a indústria de carne que é: por que não comer carne faz parte dos princípios éticos da sociedade? Por que a carne é considerada como algo que deve ser evitado? Você citou a questão da saúde, mas, em minha opinião pessoal, existem diversos outros alimentos que fazem mal à saúde e que não são nem de perto tão criticados como a carne vermelha é. A questão é que muito do que se fala sobre a carne é baseado em ideias erradas e foi isso que quis mostrar.

  9. Eduardo Goncalves disse:

    Parabéns pelo texto. Muito interessante. A ideia de contratar celebridades entendo que é para que eles emprestem sua credibilidade à marca para assim atrair consumidores. Mas um fato importante é que é uma estratégia frágil, pois rapidamente a própria mídia coloca em cheque a credibilidade de algumas dessas celebridades. Além disso, quando você diz que o setor deve martelar as idéias equivocadas, concordo que deve ser feito, mas seria muito importante que o reconhecimento venha de quem critica o setor, da mídia espontânea ou de entidades isentas que possam dar credibilidade à informações do tipo: os animais são bem tratados, o setor está comprometido com o atendimento ás leis brasileiras, a origem é conhecida e garantida por alguém, os médicos xyz comprovam os benefícios da carne vermelha…

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