Por Manil Suri
A sacralidade das vacas na Índia pode ser um cliché, mas é profundamente sentida e enraizada na história do Hinduísmo. Em Mumbai, frequentemente se encontra mulheres vendendo capim para alimentar as vacas que eles têm no reboque – por algumas rúpias, a doação não somente é uma benção, mas também, a chance de se sentir conectado às raízes rurais do país. A vaca é divinamente associada com Krishna, o pastor, e considerada uma figura materna por causa do leite que dá. Não se deve ir para um restaurante do McDonald’s da Índia esperando pedir um Big Mac.
E ainda, a carne bovina está disponível em vários restaurantes de Mumbai – de hambúrguer no icônico Leopold Café aos restaurantes com alimentos populares nas vizinhanças muçulmanas. Isso reflete a acomodação necessária na cidade – e país – com essa extraordinária diversidade de religião, cultura e riqueza.
No mês passado, entretanto, isso mudou. Os pratos com carne bovina foram forçados a sair do cardápio quando Maharashtra, o segundo estado mais populoso do país, que incorpora Mumbai, estendeu a proibição ao abate de vacas a touros e bois, e tornou a venda de carne bovina sujeita a punição de até cinco anos de prisão. Poucas semanas depois, o estado de Haryana determinou uma legislação similar. O Primeiro Ministro, Narendra Modi, sugeriu que essas leis sejam modelos para outros estados copiarem.
As leis afetaram mais que apenas restaurantes. Milhares de açougueiros ou vendedores, que tiveram seu sustento abruptamente suspenso, protestaram em Mumbai. A indústria de couro está em crise. A carne bovina é consumida não somente pelos indianos muçulmanos e cristãos, mas também por muitos de castas baixas hindus, para quem essa é uma fonte essencial de proteína acessível. Os mais pobres não desperdiçam nada, das entranhas ao sangue coagulado, enquanto sua religião pragmaticamente faz vista grossa. Estudantes da casta baixa Dalit, e outros, organizaram festivais para consumo de carne bovina em protesto pela violação de sua cultura e identidade.
Com a recente re-criminalização do sexo gay, proibições de livros e filmes controversos e até mesmo decisão contra o uso do nome “Bombay” da era colonial ao invés de “Mumbai” em uma música de Bollywood, as novas leis se unem a uma crescente lista de restrições à liberdade pessoal na Índia. A polícia na cidade de Malegaon já prendeu três homens muçulmanos acusados de abater bezerros e ordenou proprietários de bovinos a enviar fotografias de vacas e touros para um registro de bovinos, para criar um registro caso algum deles se perder.
A lei de Maharashtra tinha ficado no limbo, esperando a assinatura do presidente da Índia por 20 anos, mas foi ressuscitada somente após o partido nacionalista hindu, Bharatiya Janata Party, entrar no poder no ano passado. Isso sugere que seu verdadeiro objetivo é instaurar a base política do partido.
Alguns hindus mais linhas-duras insistem na ideia de que o consumo de carne bovina foi introduzido por invasores muçulmanos, apesar das referências ao consumo em textos antigos, como o Vedas, escrito mais de um milênio antes do tempo de Muhammad. Ao erradicar essa prática “alienígena”, eles esperam retornar o país aos valores que prezam como hindus. “Nosso sonho de proibir o abate de vacas se torna uma realidade agora”, disse o ministro chefe de Maharashtra no Twitter após a aprovação da nova lei.
Outro problema com essas proibições é que os bovinos velhos ou indesejados precisam ser mantidos a um alto custo (presumivelmente do estado) se não podem ser descartados.
A única razão prática dada pelos oficiais de Maharashtra para sua lei é que ajudará os produtores a manter seu gado em tempos difíceis, quando poderiam ficar tentados a vender. Essa motivação não tem posição histórica. De fato, ela se encaixa perfeitamente com uma teoria sobre a origem do tabu da carne bovina que o antropólogo americano, Marvin Harris, propôs há quase cinco décadas.
Harris observou que mais importante do que seu valor como produtores de leite, os bovinos na Índia formavam a espinha dorsal de uma agricultura de pequena escala. Eles eram usados para arar campos, fornecer esterco para combustível e fertilizantes e produzir bezerros para aumentar o rebanho. Ele notou que uma família que consumia seus bovinos durante um tempo de seca e fome não era capaz de se recuperar depois: eles perdiam os meios de trabalhar a terra. Durante os anos, os produtores que preservavam seus bovinos eram os que sobreviviam, levando a essa prática que está sendo gradualmente codificada na religião.
Esse drama ainda está ocorrendo em Maharashtra, que, nos últimos anos, passou por secas persistentes e devastadoras. Apesar de as leis da religião garantirem que um produtor não mais comeria seu gado, ele poderia ainda sucumbir ao equivalente moderno – vender o animal para abate, normalmente a preços de descarte. A proibição à carne bovina pode, então, ser interpretada como uma extensão da proscrição religiosa: não se deve nem comer nem vender seu gado.
Infelizmente, a situação em Maharashtra deteriorou-se além do ponto onde essa proibição poderia ajudar. Os governos anteriores desperdiçaram bilhões de dólares em esquemas de irrigação que falharam, enquanto encorajaram colheitas com uso intensivo de água, como cana de açúcar em áreas propensas à seca. Os produtores estão desesperados: em média, desde 2011, tem havido quatro suicídios de produtores rurais de Maharashtra por dia. Ao invés das prescrições antigas, eles precisam de uma rede de segurança financeira e de políticas agrícolas responsáveis para lidar com a atual situação e provavelmente com os piores efeitos da mudança climática que virão.
A civilização indiana tem evoluído durante séculos para incluir múltiplas comunidades diversas com interesses concorrentes. Apesar de sua Constituição secular, a Índia continua extremamente desigual. O governo precisa fazer todos os esforços para equilibrar os sentimentos da maioria com as necessidades da minoria. Isso era o que as leis anteriores, que restringia os abates de vacas, mas não de touros, fazia.
Impor ideais de um passado místico não é a resposta. A verdadeira lição a ser tirada da história é como objetivos utilitaristas podem moldar costumes religiosos. O hinduísmo sempre foi uma religião pragmática; o que a Índia de hoje precisa é acomodação.
Por Manil Suri, autor do romance “Te City of Devi” e professor de matemática da Universidade de Maryland, Baltimore County, em artigo para o jornal The New York Times.
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Se o consumo interno cair as exportações aumentarão, derrubando preços internacionais.