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As encefalopatias espongiformes animais – O scrapie – coçando até morrer

Por João Carlos de Campos Pimentel1

Vimos, na parte 2, que as doenças causadas por prion se devem a uma modificação na conformação espacial da PrP, uma proteína que existe normalmente nas células. Este novo tipo de mecanismo de doenças está abrindo novos caminhos na pesquisa de outras doenças neurodegenerativas humanas, como a Doença de Alzheimer, a Doença de Huntington e o Mal de Parkinson, muito mais freqüentes que os diversos tipos de CJD. Embora estas não sejam TSEs, são importantes porque apresentam sinais clínicos semelhantes e também porque acumulam proteínas anormais e insolúveis no SNC. Para se ter uma idéia da importância destas doenças, basta dizer que a Doença de Alzheimer atinge cerca de 20% das pessoas com mais de 65 anos de idade, em todo o mundo. Esta importância é um dos motores que está fazendo avançar a pesquisa de prions.

No entanto, alguns pesquisadores pensam que os agentes causadores das encefalopatias transmissíveis são um tipo de vírus cujo ácido nucléico (DNA ou RNA) ainda não foi descoberto simplesmente porque sua detecção é extremamente difícil. O agente das TSE poderia, por exemplo, ser um virino (um tipo de vírus tão simples que é constituído apenas por uma molécula de ácido nucléico envolta por uma membrana que se origina da célula do hospedeiro).

Até o advento do conceito do prion, os agentes causadores das TSEs eram conhecidos como “vírus lentos” porque, caracteristicamente, essas doenças apresentavam períodos de incubação muito longos – da ordem de anos ou décadas. Nada medido em termos de dias ou semanas, como as doenças causadas por bactérias e vírus conhecidas até então.

Em 1972, Stanley Prusiner, então médico residente de neuropsiquiatria, perdeu um paciente com CJD e ficou intrigado pela forma como após o início dos sinais clínicos, esta doença rapidamente afetou o cérebro do paciente, poupando todos os outros órgãos. Sabia-se então que duas doenças humanas (o CJD e o kuru) e duas doenças animais (o “scrapie” e a Encefalopatia Transmissível do Mink, relatada em 1965 nos EUA) eram causadas por “vírus lentos”. Como já existia grande quantidade de conhecimento científico experimental especialmente sobre o scrapie, Prusiner começou a estudá-lo. Ele criou o conceito do prion em 1982, já um pesquisador do Departamento de Neurologia da Universidade da Califórnia. Em 1997, o Instituto Karolinska de Estocolmo agraciou Prusiner com o Premio Nobel de Medicina pela “sua descoberta dos prions como um novo princípio biológico de infecção”. Em razão de sua importância para o desenvolvimento do conceito do prion, de suas características e da possibilidade de ter originado a BSE, vamos dar uma olhada na história e em algumas características do scrapie.
O SCRAPIE

Semelhantemente a CJD humana, o scrapie é uma doença neurodegenerativa dos ovinos que mostra ao exame histológico do SNC as alterações espongiformes típicas das TSE, entre elas a alteração espongiforme e perda de neurônios (além da formação de placas amilóides, achada em alguns casos). Também afeta caprinos, mas mais raramente.

Embora conhecido desde o século XVIII na Europa, o scrapie foi relatado cientificamente apenas em 1913, alguns anos apenas antes da CJD. O scrapie é endêmico especialmente no Reino Unido. Um pesquisador britânico – baseado em relatórios respondidos por ovinocultores de forma voluntária e anônima – calculou que cerca de um terço dos rebanhos ovinos britânicos teria scrapie. A taxa de incidência seria de 1 caso por 100 ovelhas por ano. No entanto, outros pesquisadores refutaram esses números.

O scrapie também ocorre na Finlândia (onde é conhecida como Rida), na França (Tremblante du Mouton) e na Alemanha (Traberkrankheit). Também é relatado por países asiáticos e africanos, pelo Canadá e Estados Unidos. Nos Estados Unidos, em rebanhos de ovinos reconhecidamente afetados dos quais os doentes são retirados tão logo apresentem sinais de scrapie, apenas um ou dois animais estão afetados, clinicamente ou em incubação, em determinado ponto do tempo. No entanto, até 50% dos animais podem estar incubando ou doentes clinicamente um dado ponto do tempo nos rebanhos de ovinocultores que não combatem o scrapie. Estes países mantêm programas governamentais para sua erradicação. O Brasil também reconhece surtos esporádicos de scrapie (em português, Paraplexia Enzoótica dos Ovinos). A Austrália e a Nova Zelândia, grandes produtores de ovinos, relatam a OIE, suportados por estudos de vigilância epidemiológica passiva e ativa, afirmam que estão livres do scrapie.

Sinais clínicos do Scrapie

Os ovinos afetados naturalmente apresentam scrapie entre 18 meses e 3 anos de idade. O período de incubação médio relatado se situa entre 1 a 2 anos. Os sinais iniciais são mudanças comportamentais como intensificação do estado de alerta e da agressividade. A seguir aparecem outros sinais nervosos como tremores musculares, convulsões e perda da coordenação motora necessária ao andar. O andar torna-se desequilibrado e hesitante. O animal pode desenvolver um movimento oscilatório quando está parado. O sinal mais evidente é um “coçar patológico”. O animal coça-se usando a boca e as patas ou esfregando-se contra objetos de maneira tão violenta que perde tufos de pelos da pelagem e provoca escoriações na pele. Geralmente o prurido se inicia perto da região da cauda e progride para a parte externa das pernas, para os flancos, o dorso e as paletas. A lã das regiões não afetadas torna-se sem brilho, embaçada. Edemas de pele, dermatites e infecções cutâneas secundárias podem ocorrer da agressão auto-infligida à pele. À medida que a doença progride, os animais afetados deixam de se alimentar, perdem massa muscular e emagrecem. O curso da doença pode variar entre 10 dias a 6 meses. Quando consome todas as reservas corporais de energia e nutrientes, o animal cai ao chão sem forças para andar, onde pode ficar caído durante horas ou dias. Deixados à própria sorte sempre acabam morrendo, mas geralmente são sacrificados.

Doença genética ou infecciosa?

Entre as décadas de 40 e 70 havia muita dúvida sobre se o scrapie seria uma doença genética ou infecciosa. Existem famílias dentro das raças ovinas cujos animais são mais suscetíveis ao scrapie que animais de outras famílias. Algumas famílias de certas raças, por exemplo, apresentavam alta incidência de scrapie entre seus animais. Em rebanhos de outras famílias, a incidência era muito baixa ou mesmo nula. Isto levava a pensar que o “scrapie” pudesse ser uma doença genética, causada pela herança de um ou mais genes defeituosos. Mas podia indicar também transmissão maternal de um agente de doença, durante a gestação ou a lactação.

Proprietários de rebanhos de ovinos de linhagens sabidamente suscetíveis, mas indenes (i.e. que nunca tinham sido afetados pela doença) sabiam que não podiam introduzir reprodutores provenientes de rebanhos afetados mesmo se estivessem sadios clinicamente. Se isso ocorresse, estes rebanhos receptores também iriam a apresentar a doença, cerca de dois anos após a introdução dos novos carneiros e ovelhas. Os produtores imputavam isso à disseminação de um ou mais genes trazido pelos reprodutores. Por outro lado, sabia-se também que ovinos de linhagens suscetíveis trazidos a pastagens que tinham sido ocupadas anteriormente por rebanhos com ovinos doentes também vinham a adoecer, mesmo não tendo sido juntados diretamente a animais doentes nem sadios do rebanho. Alguns imputavam isso a agentes de doenças desconhecidos.

Na década de 30 pesquisadores franceses já haviam mostrado que o scrapie era transmissível inoculando material da medula nervosa de ovinos doentes em ovinos sadios e conseguindo reproduzir a doença. Na década de 40 um acidente vacinal demonstrou que o agente do scrapie era resistente ao formol, um agente de desinfecção muito poderoso. Esse produto químico é usado na fabricação de vacinas por ser capaz de destruir todos os tipos de vírus até então conhecidos. O pesquisador produziu uma vacina contra “louping-ill”, uma doença de ovinos causada por vírus, usando medula espinal de animais doentes tratada com formol (com o objetivo de inativar o vírus do “louping-ill” para desta maneira usá-lo como vacina). Mais de 1000 ovinos em que a vacina foi aplicada contraíram scrapie. Isto significa que os ovinos dos quais a medula espinal foram retirados estavam incubando scrapie (um fato que ele desconhecia). Pior, significava que o agente do scrapie resistia ao tratamento com formol (um fato que todo mundo desconhecia).

No scrapie, fatores de suscetibilidade genética das diversas famílias dentro das raças interagem com as diversas linhagens de agentes da doença para causar um padrão de doença compatível com doenças genéticas e infecciosas. Com o avanço do conhecimento genético, descobriu-se que o tempo de incubação após inoculação com um complexo de agentes do scrapie estava sob controle de um único gene com dois alelos sendo que o alelo dominante conferia suscetibilidade a um agente de doença transmissível por inoculação. Usando essa informação, um programa de reprodução erradicou o scrapie de um rebanho de 40 mil ovelhas, através de seleção de reprodutores adequados.

Em 1954 foi demonstrado que o agente do scrapie podia passar por filtros capazes de reter bactérias, uma característica dos vírus (agentes muito menores que as bactérias). Filtrados obtidos de órgãos macerados (e.g. cérebro, medula espinhal, hipófise, fluido cérebro-espinhal, glândula adrenal, baço, gânglios linfáticos, pâncreas e fígado) e inoculados através da via intracerebral em ovinos, caprinos e camundongos, também conseguiram reproduzir a doença com sinais semelhantes ao do hospedeiro original, o ovino. Na década de 60 experimentos demonstraram que o scrapie era transmitido maternalmente. Um embrião proveniente de ovelha e carneiro de rebanhos sadios foi implantado em ovelha sadia (mas filha de ovelha que adoeceu de scrapie). A ovelha e o filho (o embrião implantado) desenvolveram scrapie. Um embrião deixado na mãe natural, um animal controle, não desenvolveu scrapie. Rebanhos experimentais afetados e não afetados pela doença foram estudados da seguinte forma. As ovelhas (sadias clinicamente) de ambos os rebanhos foram acasaladas com carneiros provenientes de rebanhos afetados. A incidência de scrapie nos filhos desses acasalamentos era maior (62%) nos rebanhos afetados que nos rebanhos não afetados (32%).

Em estudos experimentais, a transmissão lateral foi também encontrada. Ovelhas de rebanhos não afetados foram colocados em contato com animais de rebanhos afetados. No entanto, o acasalamento só foi permitido entre animais do mesmo grupo: ovelhas de rebanho não afetado acasalaram com carneiros de rebanho não afetado e ovelhas de rebanho afetado acasalaram com carneiros de rebanho afetado. Cerca de 25% dos animais nascidos do acasalamento de ovelhas e carneiros de rebanhos não afetados também desenvolveram o scrapie.

Os pesquisadores achavam que o scrapie era causado por um “vírus lento” por causa do longo período de incubação – até 5 anos – após inoculação para os animais apresentarem a doença. No entanto, o agente do scrapie teria que ser um tipo de vírus com características muito diferentes dos conhecidos até então, em função de suas características de resistência a agentes físicos e químicos. Vírus possuem ou DNA ou RNA e, assim, são sensíveis a essas substâncias. Estudos nas décadas de 50 e 60 mostraram que o agente do scrapie resistia à temperatura de 100ºC e ao tratamento com formol, fenol, clorofórmio e éter, substâncias capazes de inativar, i.e. destruir, os vírus até então conhecidos. Isto é, se fosse um vírus, o agente do scrapie teria de ser muito diferente dos vírus conhecidos. Outros estudos também revelaram que o agente do scrapie era resistente a raios ultravioleta e a raios ionizantes e também à ação da enzima ribonuclease e do produto químico acetiletilenoamina. Todos estes agentes físicos e substâncias têm ação destruidora sobre os ácidos nucléicos e, portanto, são capazes de inativar a infectividade dos tipos de vírus conhecidos.

Mais uma indicação de que o agente do scrapie não era um vírus foi a impossibilidade de se detectar respostas inflamatórias e/ou imunitárias em animais infectados natural ou experimentalmente. Estas reações são características de infecções causadas por agentes de doenças infecciosas. A falta dessas reações levou alguns pesquisadores a pensar que o agente do scrapie pudesse ser muito semelhante aos componentes celulares normais – proteínas, por exemplo – e que o animais infectados fossem, portanto tolerantes a sua presença.

Durante a década de 60 e 70, a transmissão experimental para camundongos e hamsters continuou. Vinte e duas linhagens de prions de scrapie derivadas de diferentes rebanhos de ovinos foram descobertas. Essas linhagens diferem uma das outras em certas características em função da raça de camundongo em que são inoculadas. Variando-se a raça (e a família, dentro da raça) do camundongo, a duração do período de incubação da doença de cada prion se modifica. A localização das alterações espongiformes produzidas no cérebro também é característica de cada linhagem do agente, nos camundongos de diferentes origens. A análise de cortes de até 12 sítios cerebrais distintos (como o córtex, cerebelo, tronco cerebral etc) possibilitou a criação de um perfil de lesões.

Com os trabalhos de Prusiner, a maior parte dos pesquisadores tem reconhecido como correta a hipótese do prion e o conhecimento na área aumenta aceleradamente. O gene que codifica para maior predisposição por parte de algumas famílias de ovinos foi identificado ao gene que codifica para a PrP sadia (PrPc, em que o “c” superescrito quer dizer “de origem celular”). A PrP, em sua forma patológica, nada mais é que a PrPsc . Agora podemos entender que o “sc” é abreviatura de scrapie. PrPsc hoje em dia é usado para denotar o prion patogêncio de todas as TSEs, incluindo as humanas.

A agregação da informação oriunda dessas diferenças em termos de período de incubação e do perfil de lesões cerebrais permitiu identificar as diferentes linhagens do prion do scrapie. Mais tarde, estes testes foram aplicados aos prions recolhidos de bovinos afetados por BSE. Eles permitiram deduzir que havia apenas uma linhagem de prion patogênico bovino e que essa linhagem não pertencia a nenhuma das linhagens conhecidas de prions de scrapie. Além disso, determinaram que o padrão da doença era similar para todas as raças de gado bovino de maneira que fatores de susceptibilidade genética não eram importantes nesta espécie animal.

Saúde pública

Em relação à saúde pública, o conhecimento de que o scrapie era uma TSE e que o ser humano também era afetado por TSEs (a CJD e o kuru) levou a estudos epidemiológicos que procuraram determinar eventual associação entre a ingestão de carne e/ou vísceras de ovinos com a aquisição de TSE por seres humanos. Eles sempre resultaram negativos. Isto é, a ingestão de carne e vísceras de ovinos por parte dos seres humanos não era fator de risco para a aquisição da CJD.

No início da epidemia da BSE, esta informação foi estendida pelos cientistas para a BSE. Eles pensavam que o agente causador da doença da vaca louca era o mesmo agente do scrapie (i.e., que o agente da BSE fosse qualquer dos agentes do scrapie não modificados). O público consumidor de carne bovina, tanto no Reino Unido quanto dos países importadores, foi tranqüilizado com base nesta informação e na pressuposição de que a BSE era provavelmente causada pelo agente do scrapie (que teria saltado a barreira interspecífica ovino-bovino). Isto é, como os estudos epidemiológicos mostravam que o agente do scrapie não causava a CJD e como a BSE deve ter sido causado por este agente, então deveria ser seguro consumir produtos derivados de animais que se mostram sadios clinicamente, mas que podiam estar dentro do período de incubação da BSE. Uma informação que não se revelou verdadeira, como sabemos.
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1João Carlos de Campos Pimentel é médico veterinário, Assistente Agropecuário IV da CATI-SAA-SP e membro do conselho técnico da ANAPECC (antigo Sindipec).

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