A Câmara dos Deputados deve aprovar hoje projeto de lei que transfere do Ministério da Agricultura para as próprias empresas parte dos processos de fiscalização sanitária da agroindústria, como frigoríficos e fábricas de alimentos vegetais e animais. A proposta está em fase final de votação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), sem mais possibilidades de alterações, e tem caráter terminativa. Deve seguir para discussão no Senado, sem passar pelo plenário.
O projeto que institui “programas de autocontrole dos agentes privados regulados pela defesa agropecuária” foi enviado em abril do ano passado pelo governo Jair Bolsonaro e passou por três comissões (de Agricultura, de Finanças e de Constituição). A CCJ aprovou o texto em dezembro e cabia recurso para que fosse votado pelo plenário, mas a oposição não reuniu as assinaturas necessárias. Com a volta das comissões esta semana, a redação final deve ser aprovada hoje.
O texto determina que empresas, como frigoríficos e indústrias de processamento animal, criem programas de autofiscalização, contratem profissionais próprios ou terceirizados para acompanhar os processos in loco e depois os submetam, por meio de relatórios, para que os fiscais do Ministério da Agricultura avaliem. As regras sanitárias e de qualidade dos produtos estão todas mantidas, estabelecidas em outras leis, mas o acompanhamento diário sobre sua execução passaria para a empresa. Os fiscais fariam vistorias “surpresa”.
Para a oposição ao governo, a mudança é um prejuízo para a sociedade. “O setor privado não pode se autofiscalizar. Com todo respeito, o setor privado busca, em primeiro lugar, o lucro. Fiscalizar em nome da sociedade, em nome da vida e do bem comum é papel do Estado”, disse o deputado e ex-ministro Patrus Ananias (PT-MG).
Já os governistas afirmam que a burocracia governamental não acompanhou o crescimento do setor, que hoje está travado por falta de fiscais para liberar plantas produtivas, insumos e procedimentos. “Temos plantas prontas, que a gente poderia estar entregando produto lá para a China, por exemplo, mas não conseguimos porque falta laudo”, disse o deputado Pedro Lupion (PP-PR), relator na CCJ.
Para Lupion, o projeto é necessário porque em muitas regiões há insuficiência de fiscais, como o Paraná, onde há profissionais responsáveis por 30 municípios. “Os relatórios, os laudos, toda a documentação, precisará da chancela do poder público. Ninguém está eximindo o poder público de responsabilidade, só estamos buscando acelerar os processos”, afirma o deputado.
O diretor de comunicação e relações públicas do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical), Antônio Andrade, diz que o projeto traz avanços, principalmente pela busca de uniformizar os processos administrativos, regras para fiscalização de fronteiras e combate ao agroterrorismo, mas também preocupações.
Entre os pontos problemáticos, aponta Andrade, estão “a falta de limites para a concessão de registros automáticos de produtos e o efeito suspensivo como regra aos recursos” contra autuações. A Anffa destaca que não é contra o autocontrole, já aplicado há décadas no setor, mas que apenas quatro das 22 mudanças propostas por eles para melhorar o projeto foram incorporadas.
Por outro lado, os deputados modificaram a tabela de multas quando o projeto passou pela Comissão de Agricultura, grupo em que a bancada ruralista é amplamente majoritária. A tabela foi redesenhada, com a multa máxima por irregularidades cometidas pelas grandes empresas reduzida de até R$ 300 mil para até R$ 150 mil. A maior pena para as médias empresas caiu de R$ 300 mil para R$ 50 mil e, para as de pequeno porte, diminuiu de R$ 220 mil para R$ 30 mil. Relator no colegiado, o deputado Domingos Sávio (PL-MG) defende as mudanças. “Hoje, a maior multa que existe é de R$ 15 mil. A escala do governo estava exagerada.”
O projeto ainda permite que o estabelecimento que cometer irregularidades não tenha um auto de infração inscrito contra si se corrigir a falha, mas os fiscais representados pela Anffa consideram que o texto ficou muito vago sobre qual tipo de erro poderá ter a punição aliviada desse jeito.
A proposta também cria um sistema de recursos administrativos para as empresas recorrerem ao próprio governo. Hoje, cabe apenas um recurso contra os autos de infração, à secretaria regional. Com o projeto, cria-se uma nova instância, em Brasília. Em todos os casos, haverá suspensão dos efeitos da autuação até que o pedido seja julgado.
Além disso, no caso de autuações mais graves, em que a penalidade é a suspensão das atividades ou cancelamento do registro da empresa, será criada uma terceira instância julgadora. A princípio, o governo queria que a composição dessa “comissão especial” fosse definida por regulamento, mas a bancada ruralista pôs no texto que serão cinco integrantes: dois do Ministério da Agricultura, um do Ministério da Justiça e dois da iniciativa privada, indicados pelas confederações nacionais da Agropecuária (CNA) e da indústria (CNI). Esse comitê poderá converter as penas mais duras em multas.
A nova forma de fiscalização será obrigatória para todos os produtores e agroindústrias, com exceção dos “agentes da produção primária agropecuária”, em que a adesão será opcional. O prazo de entrada em vigor será escalonada, em até 90 dias após a sanção – o que dependerá, primeiro, de uma aprovação pelos senadores. O projeto surgiu anos depois de uma operação da Polícia Federal, a “Carne Fraca”, denunciar fiscais e grandes frigoríficos por fraudes.
Fonte: Valor Econômico.