Uma das grifes da Santíssima Trindade das churrascarias à la carte de São Paulo nascidas no final dos anos 50 – as outras são Rodeio e Dinho’s – o grupo Rubaiyat foi protagonista recente de um dos maiores negócios da gastronomia brasileira: com um investimento primário de cerca de € 46 milhões, o fundo espanhol Mercapital passa a ter 70% dos restaurantes do grupo – três unidades em São Paulo e uma em Madri, que atendem a mais de 600 mil clientes por ano.
Foi o desfecho milionário e feliz de um período muito difícil para a família Iglesias, quando se juntaram a crise europeia, o endividamento da empresa no Brasil e o AVC que tirou da linha de frente o patriarca Belarmino. Coube a Belarmino Filho comandar o processo de venda e da providencial sucessão. O melhor é que, a partir de agora, mantendo-se como gestor da marca, ele põe em prática, com entusiasmo renovado, o plano de se tornar o rei do churrasco na América Latina.
Em entrevista à revista GoWhere Gastronomia, Belarmino Filho revela o making of desse negócio.
Belarmino e Belarmino Filho
Você, filho mais velho, nasceu três anos depois do Rubaiyat. Qual é a sua primeira lembrança dele?
Com uns 5 ou 6 anos, eu correndo pelo salão com os aparadores – aqueles carrinhos de madeira que levavam os pratos, no Rubaiyat da Vieira de Carvalho. Meu pai trabalhava muito. Para vê-lo, a gente tinha de ir ao restaurante, no fim de semana. Sou do tempo do carrinho de rolemã, mas nunca tive um. Meus carrinhos eram os aparadores do restaurante.
O chão era de mármore e eu, sábado e domingo, antes do almoço, saía pelo salão derrubando tudo. Meu pai deixava porque era o único jeito de ele ver os filhos. Outro dia achei uma foto minha, com sete anos, na mesa com meu pai. Devia estar tomando uma bronca, porque eu estava cabisbaixo.
Começou cedo a trabalhar no Rubaiyat?
Com 10 anos, meu pai já me pôs para trabalhar. Eu aprendi a enrolar as toalhas do Rubaiyat. Com 13 ou 14 anos, eu já mudava mesas. Sim, porque a gente ficava ali e precisava arrumar o que fazer. Essas são as pinceladas de memória que eu faço daqueles tempos.
Quando você teve consciência de que um dia sucederia seu pai no comando da casa?
Meu pai sempre priorizou nos filhos a formação que ele não teve. A casinha de meus avós na Espanha era de pedra, com lugar para duas vacas embaixo de uma tábua de madeira furada – o calor das vacas aquecia a casa. Não tinha água. Eram campesinos, com uma economia de subsistência. Naquela casa se comia, às vezes, um caldo das batatas que eles plantavam.
Meu avô, aliás, contrabandeou batatas para Portugal no lombo. Essa miséria meu pai não queria para os filhos. Ele só estudou até o ginásio porque precisava trabalhar. Por isso, nunca quis que a gente trabalhasse enquanto estudasse. Me formei em Economia aos 21 anos, fiz pós em Administração e mestrado em Hospitality Marketing. Ainda trabalhei dois anos no mercado financeiro.
E o Rubaiyat, quando voltou à sua vida, profissionalmente?
Em 1983, numa viagem noturna da Galícia a Madri, meu pai, que dormia sempre no trem, naquela noite não conseguiu pregar o olho. Nem eu. Viemos na cabine com as luzes apagadas, conversando. Ele me contou então que tinha recebido uma oferta pelos restaurantes e estava decidido a vender. Eu disse: “A decisão é sua. Mas, vendendo a longo prazo, você vai dar os restaurantes. Porque vem aí uma grande inflação e eles vão te pagar com os rendimentos dos restaurantes”. Conversamos a noite inteira. No desembarque, ele me disse, naquela filosofia dele: “Quem não vende, compra. Se não vendermos, vamos comprar de novo. E só vou fazer isso se você vier trabalhar comigo”. Vim.
Por onde você começou?
Na época, não havia computador, mas tive a ideia de implantar um orçamento. Fiz uma planilha imensa, à mão. Achei que fazia muito, mas na verdade não fiz nada. Meu pai foi um grande exemplo, um marco no setor de carnes em São Paulo. Ele fez uma revolução no setor das churrascarias. Primeiro na Cabana, onde foi garçom, em seguida um salto com a Guacyara, onde foi gerente. Com o Rubaiyat, as churrascarias deixam de ter como símbolo o arroz de carreteiro e garçons usando bombachas e passam a ser grills.
Começa com ele a era das superchurrascarias. O que eu introduzi nessa história? Traduzi ferramentas empíricas de controle de caixa, orçamentos sistematizados com dados históricos, check lists, processos. Fiz manuais de treinamentos – para treinamentos que já existiam. Fomos a primeira empresa paperless do País em nosso segmento. Fiz o Figueira, fiz a casa de Buenos Aires, a da Espanha. Esses últimos 20 anos são meus melhores anos. Ajudei meu pai dobrar a companhia. Mas sem ele eu não teria feito nada.
Belarmino com os filhos
Qual foi o auge da marca do Rubaiyat nesses 20 anos?
Os cinco anos de 2000 a 2005 foram o melhor período em número de clientes e performance. Mas nosso setor teve de passar pela experiência de viver sem inflação e ser eficiente. Se não tivesse ido para a Espanha, onde morei três anos, eu não teria tido o grau de eficiência que tenho hoje.
Esses três anos me obrigaram a fazer aqui toda uma reestruturação de conceitos. Cheguei à Espanha no auge do boom econômico, no ano seguinte o movimento caiu 20% e mais 20% no outro. Lá tive um grande aprendizado de como enxugar uma empresa sem perder eficiência. Cortar na carne.
Você pegou a crise espanhola em cheio?
Começou em 2008. Em 2009 e 2010, a coisa foi brava. Em 2010 tive de voltar para o Brasil porque já não havia nada a fazer em termos de expansão na Europa, como planejávamos – estávamos com 35% de queda em relação a números históricos.
A clientela de 15 mil pessoas/mês caiu para 9 mil. Mas ainda assim o Rubaiyat de Madri era uma operação rentável e em pé. Eu tenho uma grande casa em Madri. Um grande negócio. O Rubaiyat é único.
Seu pai saiu da Espanha prometendo só voltar se vencesse no Brasil. Sua ida para lá teve também um sentido muito especial?
Ir para a Espanha teve, sim, o sentido da “síndrome do imigrante”– voltar às origens com muito sucesso. Pelo menos no começo, foi assim: em 2006, o lucro de um cliente na Europa equivalia a três clientes aqui. Portanto, se eu abrisse três restaurantes lá, eu seria três vezes maior do que aqui. Só errei o ano – porque a crise começou em 2008. Eu devia ter ido em 2000. Mas não me arrependo. A Espanha devolveu tudo à nossa família.
Você se refere à venda ao grupo espanhol?
Nos 58 anos do Baby Beef Rubaiyat, os Iglesias tiraram do boi o melhor que ele pode fornecer – como o corte que lhe dá nome. E sempre a partir do gado “da casa”. O Rubaiyat foi pioneiro no Brasil do conceito ‘’da fazenda ao prato’’, produzindo em Dourados, Mato Grosso do Sul, boa parte da carne que serve em seus restaurantes de São Paulo, os dois Baby Beef e o Figueira Rubaiyat.
Hoje, além da carne Brangus, a fazenda cria o frango de origem francesa Label Rouge e uma linhagem especial de suínos (baby-pork). Todos os animais são criados soltos, com alimentação natural à base de cereais e muito verde. O gado Wagyu – o mesmo que dá origem ao Kobe Beef, a carne mais tenra e mais cara do mundo – é a nova criação da Fazenda Rubaiyat. E contrariando a ideia de que o boi já deu o que tinha que dar em matéria de cortes gourmet, Belarmino Iglesias Filho continua descobrindo novos cortes no animal que deu à família fama e fortuna.
Acaba de lançar dois novos cortes: o Baby Gold e o Levíssimo. São carnes de novilhos precoces da raça Brangus criados na Fazenda Rubaiyat. O Baby Gold é extraído da ponta do contrafilé, sua parte mais nobre, e é mais marmorizado. O Levíssimo vem do coração do Baby Beef, tem sabor delicado e pouca gordura, o que faz dele uma opção mais saudável.
Sim. Agora a gente vai poder fazer um projeto lindíssimo de empresa latino-americana. Meu pai sempre dizia: “Cuidado com a América: ela tudo te dá e tudo te toma”. Em julho do ano passado, quando fecharíamos o negócio, eu tinha levado meu pai já doente à Espanha e lá ele piorou muito.
No dia do contrato, meu pai estava numa UTI, muito mal, pra morrer. Antes de assinar, passei no hospital e achei que ele não durava até as 4 da tarde. Assinei, voltei ao hospital, sentei na cama dele e falei: “De você a América não tomou. Acabei de fazer o negócio de sua vida e de nossa família”. Choramos meia hora juntos. No dia seguinte, ele teve alta da UTI.
Quando você chegou à conclusão de que era preciso uma injeção financeira para manter o Rubaiyat?
Para manter, não. Mas sem ela nós não poderíamos crescer no ritmo que desejávamos.
Vocês estavam endividados?
Tínhamos passivos que não comprometiam a empresa, mas não nos permitiam crescer. Meu pai sempre teve grande patrimônio. Teríamos de vender bens. O que ganhávamos, pagávamos de juros.
Desculpe a pergunta: se os restaurantes estão sempre cheios, de onde vinham as dívidas?
Os restaurantes sempre foram rentáveis. Mas fizemos maus investimentos em negócios imobiliários. Vínhamos carregando a dívida, pagando juros. Se o movimento dos restaurantes caísse aqui na mesma medida que na Espanha, teríamos um severo aperto de liquidez – e provavelmente teríamos de vender barato um patrimônio feito ao longo de uma vida.
Mas chegaram a pensar em concordata, fechamento?
Nunca tive medo de quebrar. Meu pai veio ao Brasil sem nada e nunca deixou de pagar uma conta. Essa é a minha escola. Nunca tive medo de concordata. O trabalho é sempre superior à dívida. Agora, quando você perde 30% do faturamento, é preciso ter fundos. O que quebra uma empresa é a falta de geração de caixa.
Quando voltei ao Brasil, achei que a crise europeia ia bater aqui. Graças a Deus, não bateu. Tivemos 11% de queda, reflexo da Europa, da insegurança, da política de vinho. Mas, se eu não fizesse frente a essa queda da rentabilidade, em algum momento eu ia me ver estrangulado. Nesse contexto, o negócio caiu do céu.
Como foi o namoro com a Mercapital?
Não houve namoro, foi absoluta coincidência. O Rubaiyat não estava à venda. Um dia, em maio de 2011, foi almoçar no restaurante de Madri um diretor da área de fusão e aquisição do Santander, meu maior parceiro, com um pessoal da Mercapital, para estudar um negócio qualquer. Meu diretor de Madri, o Fernando Lopes, que tinha sido vice-presidente de um banco espanhol e conhecia todos, acabou sentando à mesa e, conversa vai, conversa vem, o pessoal do fundo insinuou que estaria interessado em se associar a nós também. O Fernando me liga e eu disse: o Rubaiyat não está à venda.
Meu pai tinha tido o AVC há dois meses, estava mal, eu estava organizando a vida na sucessão. Acabei dizendo ao Fernando: não vou me envolver nisso, porque, se for pensar em vender a empresa, eu não trabalho; mas se você achar que deve vender, cuide disso. Passam-se cinco meses, meu pai tinha melhorado e o levei de novo para a Galícia fazer a colheita das uvas para o vinho que a gente produz lá. O território espanhol era de meu pai – era a terra dele, as uvas dele. Mas dessa vez, com ele doente, eu precisava ir junto. E o Fundo queria me conhecer.
Marquei o encontro na casa da Galícia. Fizemos o negócio numa tarde de domingo – o único dia em que eu poderia atendê-los. Ali criamos as premissas – dia 20 de dezembro eu teria de receber uma oferta vinculante e dia 20 de fevereiro assinaríamos o contrato. Uma vez assinado, eu teria de pedir autorização ao Ministério Público, já que meu pai estava interditado por causa da doença. Era um negócio muito complicado, que tinha tudo para não dar certo. Mas deu. Dia 25 de julho de 2012, dia de Santiago, padroeiro da Espanha, o negócio se concretizou e o dinheiro entrou na conta.
Eles compraram 70% do grupo, mas você ficou com a gestão. O que mudou no dia a dia do Rubaiyat?
Minha primeira aposta com o negócio era dar liquidez à empresa. A segunda, concretizar nosso plano de expansão – com todos os apertos, eu já estava fazendo a casa de Brasília. O Fundo sentiu que havia uma marca consagrada, um negócio bem-sucedido e uma ideia de expansão.
Com essa injeção de capital, dei liquidez à família, resolvi o processo sucessório e vou ser o macho em churrasco à la carte na América Latina. É nossa expertise e nós falamos espanhol. Este ano abrimos em Brasília, México e Santiago do Chile. Prometi a eles fazer cinco restaurantes em cinco anos, vou fazer cinco em dois anos – esses, mais Bogotá e provavelmente Rio de Janeiro.
Você renovou seu entusiasmo pela marca Rubaiyat?
Em dois anos, meus 30% vão valer mais do que recebi pela venda dos 70%. É um projeto tentador, desafiante. Estamos vivos e eu tenho agora uma real oportunidade de profissionalizar a companhia – é o maior ganho em tudo isso. Passei a ser um provedor de energia no negócio. Não assino mais cheques.
Temos um time novo de profissionais no backoffice do restaurante – diretores de marketing, finanças e recursos humanos, por exemplo, para estabelecermos uma plataforma de lançamento. Os próximos restaurantes serão plug-ins. Você liga na tomada e eles começam a funcionar.
Os espanhóis estão satisfeitos?
Super satisfeitos.
Em Madri o pessoal da Mercapital come de graça?
Tem 15% de desconto (risos). Aqui todo mundo agora paga. No último fim de semana, eu estava com meus filhos em Madri. Eles moraram lá e ainda têm muitos amigos. Aparecem no restaurante para uma mesa de 13. Eu pensei: estou morto! Acabei pagando a conta…
Por falar em conta, comida no Brasil é cara?
Não subimos preços há dois anos, mas no Brasil tudo é um absurdo. O Custo Brasil é extraordinariamente alto.
Como seu pai, doente, lidou com esse processo?
Meu pai sempre foi meu melhor amigo, meu melhor conselheiro. Não tínhamos um grau de intimidade verbal, mas uma cumplicidade, uma interação mágica. Eu sabia o que ele pensava e vice-versa. Fui companheiro nos erros e nos acertos dele e vice-versa. Com o AVC, isso acabou da noite para o dia. Foi minha grande perda. Não tenho mais com quem discutir uma estratégia.
Procuro colocá-lo a par das coisas, mas não sei quanto ele entende e quanto lembra no dia seguinte. De uma certa maneira, me tornei órfão e ao mesmo tempo responsável por ele e por continuar a obra dele. De um dia para o outro. Foi duro. Tive de tomar decisões pensando como ele pensaria. Isso, sim, me tirou o sono algumas noites. Nós não estávamos preparados para vender.
Seus filhos estão na sua linha de sucessão?
Por enquanto, quero dar a eles o que meu pai me deu: o melhor em educação. Já falam quatro línguas e estudam em Londres. Não sei o que o futuro reserva a eles.
O Brasil continua sendo um grande atrativo, na área gastronômica, para investidores estrangeiros?
Já foi. Passou a onda. Fui a segunda e última grande atração – a primeira, o Fogo de Chão. Não vai ter mais.
Fonte: revista Go’Where Gastronomia, resumida e adaptada pela Equipe BeefPoint.