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Crise BSE USA – Oportunidades e Ameaças

Por Enio Antonio Marques Pereira1

O agente infeccioso da BSE é um prion-proteína que, por uma determinada razão, modificou a sua estrutura e induziu outros prion-proteína ao mesmo processo, provocando uma gradual deterioração no tecido do cérebro de bovinos, a semelhança da “Creutzfeldt-Jakob disease” nos humanos. Este agente foi diagnosticado, em 1986, na Europa, quase que exclusivamente, em vacas leiteiras acima de 3 anos. Ele tem sido encontrado, esporadicamente, fora dos países europeus, também, em vacas leiteiras especializadas.

Os cientistas acreditam que o prion-proteína bovino alterado possa, também, contaminar e induzir os prions-proteína existentes no cérebro humano a uma variante da doença “Creutzfeldt-Jakob”.

Os sintomas desse tipo de doença só aparecem muito tempo depois da contaminação. O único caminho para estarmos completamente seguros dessa doença ocorrerá quando os cientistas descobrirem um teste para detectar o anormal prion-proteína nas vacas assintomáticas, permitindo retirá-las da cadeia alimentar humana.

Os especialistas em políticas sanitárias públicas estão trabalhando duro para a busca de medidas efetivas que permitam quebrar a cadeia de transmissão do prion-proteína anormal. A Organização Mundial da Saúde Animal, através o Código Sanitário dos Animais Terrestres http://www.oie.int/esp/normes/mcode/E_summry.htm , definiu uma política para a BSE, hoje de natureza compulsória de adoção pelos membros.

Essa política tem por base: a eliminação dos tecidos de risco nas cadeias alimentar dos ruminantes e humana; o rastreamento permanente dos fatores externos e internos de risco (7 anos); e o exame dos animais mortos com sintomatologia nervosa.

Essa política está na Norma OIE sobre BSE- CAPÍTULO 2.3.13., constituindo no elemento de referência para avaliar a política pública sanitária, em seu aspecto específico, determinar o risco de um país em relação à doença e certificar os bovinos e produtos derivados.

Normalmente a Avaliação de Risco para BSE é realizada por um Comitê Independente de Cientistas que oferece apoio à decisão das autoridades sanitárias. Para a montagem dos cenários indispensáveis aos estudos é necessário um amplo levantamento sobre a organização pecuária, com ênfase nas políticas e estrutura de saúde animal. Os países fornecedores de animais ou derivados são obrigados a franquear as informações, inclusive autorizar a visita de inspetores do país cliente para auditoria dessas políticas.

O Brasil por ser grande fornecedor de carne para muitos países é fator de risco externo no processo de Avaliação de Risco da possibilidade da entrada do prion-proteína alterado na cadeia alimentar nesses países.

Os títulos do Código Sanitário para Animais Terrestres sobre notificação de enfermidades, obrigações éticas em matéria de comércio internacional, análise de risco associada às importações, procedimentos de importação e exportação, recomendações aplicáveis a enfermidades, recomendações relativas a quarentena, inativação dos agentes patógenos, transporte dos animais, princípios gerais e sistemas de vigilância para o reconhecimento do “status” de pais ou zona livre de determinada enfermidade ou infecção, onde se encontra o capítulo sistemas de vigilância e seguimento contínuo da encefalopatia espongiforme bovina – ANEXO 3.8.4., e modelos de certificação, tratam das obrigações e direitos para o estabelecimento de um nível adequado de proteção a saúde animal e humana.

Está claro que a avaliação de risco para Vaca Louca, tanto para quem vende como para quem compra, só pode ser reconhecida se ocorrer nos marcos da Organização Mundial da Saúde Animal, por mandado do Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias, parte integrante do Acordo sobre Agricultura, conforme a decisão dos países que aprovaram, e introduziram em seus marcos jurídicos, a Ata de Encerramento da Rodada Uruguai de Negociações do GATT.

As perspectivas para a pecuária brasileira continuam boas. Os agentes econômicos têm mostrado grande capacidade empreendedora e as oportunidades externas devem crescer nos próximos anos ao final das negociações OMC, ALCA e MERCOSUL/EU. Os analistas internacionais vêm o Brasil com destaque, prevendo forte fluxo de investimento estrangeiro na compra de ativos, em especial indústrias de abate e processamento de carne. O Risco BSE é um fator importante nessas decisões de investimentos. As ARs para BSE realizadas por esses países consideram a carne brasileira na categoria de risco desprezível.

A BSE detectada em uma vaca nos Estados Unidos já acarreta grandes prejuízos para a indústria americana. É um fator de incerteza para o mercado mundial porque as decisões sanitárias continuam ocorrendo à margem da ciência e dos processos de análise de risco, preconizados pelos organismos internacionais de cooperação.

Este caso específico atinge forte as correntes de comércio intra NAFTA e América do Norte – Ásia, gerando um grande vazio no abastecimento de países como o Japão e Coréia, responsáveis por 25% das compras mundiais, México e outros da América Central. Esses países são abastecidos, também, pela Austrália e Nova Zelândia, que não têm capacidade de suprir o espaço deixado pelos produtos oriundos da América do Norte.

Em menor escala, atinge o fluxo da corrente América do Norte – Rússia, sem gerar, no entanto, problema de abastecimento, uma vez que os russos têm alternativas de compra nos mercado dos países do MERCOSUL. Como o mercado estava ofertado, os analistas acreditam que a política russa de quotas poderá ser reavaliada.

As demais correntes expressivas de carne estão fora da influência das vendas americanas e australianas. Elas são lideradas pelos acordos e relações comerciais da União Européia com os paises do Mercosul, África, Leste Europeu e mulçumanos. Os paises do MERCOSUL são os maiores abastecedores das necessidades dos “traders” europeus, donos das logísticas na Europa, nos paises do Leste e nos países mulçumanos. As novas regras de proteção sanitária (Livro Branco) recém ordenadas pelo Parlamento Europeu, à luz da OMC, exigem medidas mais rígidas de controle por parte dos privados, auditorias públicas em todos os elos da cadeia de produção/comércio e auditorias nos sistemas e serviços públicos nacionais responsáveis pela inspeção e vigilância sanitária. Essas regras geram custos crescentes, para os privados e para o Governo, conforme o tipo e a quantidade dos perigos gerenciados e passam a interferir na capacidade competitiva dos agentes.

O mercado de opoterápicos e de produtos de embelezamento sofrerá forte impacto com a retirada das matérias primas decorrentes dos abates do Canadá e USA de 45 milhões de animais por ano (abate mundial estimado em 230 milhões de cabeças). Os preços, certamente, subirão. Existe real oportunidade para os paises que tenham produtos seguros.

Os produtos alternativos às farinhas de carne e osso (uso proibido na cadeia alimentar dos ruminantes como medida de gerenciamento do perigo BSE), seguem em pressão de demanda.

Os produtos alternativos à carne bovina, também, em pressão de demanda, inclusive pela percepção de risco dos consumidores mais esclarecidos.

Neste momento:

I) oferecer tranqüilidade aos consumidores dos inúmeros produtos originários do abate de bovinos nascidos no Brasil, através da publicidade dos relatórios anuais da Análise de Risco da introdução de BSE no Brasil, realizados pelo Ministério da Agricultura;

II) dar ênfase nos programas de ajuste institucional do Sistema Unificado de Sanidade Agropecuária aos compromissos da segurança dos alimentos da fazenda a mesa do consumidor, com atenção as medidas para o reconhecimento de pais livre de BSE;

III) identificar as propriedades rurais e os animais, começando pelo maior de risco (reprodutores, em especial vacas leiteiras especializadas);

IV) estabelecer o Protocolo de Produção e Controle para as propriedades que possuam bovinos, iniciando pelas que tenham animais para reprodução;

V) implantar Comitê Independente de Análise do Risco da Introdução de BSE no Brasil e, propor aos países membros do Mercosul a criação de um Comitê Independente para o MERCOSUL;

VI) ampliar a rede de Centros Colaboradores do Departamento de Defesa Animal, de modo a cobrir todas as áreas do conhecimento cientifico relacionado com a BSE;

VII) revisar, discutir, publicar e promover o Plano de Emergência para BSE (inclusive Gabinete de Crise, fluxo de responsabilidades, Centro Colaborador), com assessoramento da OPAS, da EMBRAPA e Defesa Civil;

VIII) recomendar aos Governos Estaduais a implantação de Grupo Tarefa de Gestão do Perigo BSE , com o objetivo de organizar e coordenar as ações táticas e operacionais de vigilância e controle permanente dos fatores de risco;

IX) estabelecer plano para o exame do cérebro das vacas de reprodução abatidas, que foram descartadas da pecuária leiteira;

X) criar Grupo Tarefa de Gerenciamento dos Tecidos de Risco para a Saúde Humana, com a participação dos Serviços de Inspeção dos Estados, Sistema ANVISA, com o objetivo de organizar e coordenar a ações tática e operacionais de vigilância e controle permanente dos tecidos de risco. Seria importante publicar um relatório de Avaliação de Risco para a Saúde Humana, com a finalidade de aperfeiçoar o gerenciamento e ter uma idéia mais apropriada da exposição a que os brasileiros foram expostos nos anos iniciais da crise da Vaca Louca;

XI) criar Grupo Tarefa para os Fatores Externo de Riscos , entre 1993 a 2002, com participação dos Serviços Estaduais, que permita organizar, de forma descentralizada, os documentos comprobatórios de todos fatos nos cenários reais, bem como levantar dúvidas para orientar pesquisas mais aprofundadas;

XII) criar Grupo Tarefa de Comunicação do Perigo BSE com o objetivo de organizar as ações tática e operacionais de mobilização social para que os grupos sociais esclarecidos e saibam o papel a cumprir em relação ao gerenciamento do perigo BSE;

Observa-se que a crise é de confiança nas políticas públicas sanitárias tradicionais e que os próprios serviços veterinários não confiam uns nos outros, fato comprovado pelas medidas que vem sendo adotadas pelos países tidos como livres ou de baixa incidência da BSE. Observa-se, também, que os países continuam em suas posturas reativas ao emprego do modelo de administração gerencial para a saúde pública agropecuária. As mudanças de modelo têm ocorrido, aceleradamente, depois da ocorrência de grandes escândalos.

Como a discussão e as providências para o reforço das medidas de gerenciamento e de comunicação de risco para BSE estão ocorrendo em todos os países do mundo, deve-se esperar, em um primeiro momento, o surgimento de sérios desencontros entre os serviços sanitários. Estamos em um período de transição no modelo de organização da saúde animal no mundo. Nesse processo, os países estão em momentos diferentes e, por se tratar de um contaminante para o homem, pouco conhecido, tipo bomba relógio (longo tempo para a aparição dos sintomas e diagnóstico possível só depois do óbito), as incertezas são muito maiores.

Neste tipo de ambiente, os agentes econômicos do comércio (o contato direto com os consumidores obriga respostas eficientes aos seus clientes com soluções que atendam os seus interesses imediatos) se tornam hegemônicos, passando a gerar as ordens para as cadeias de suprimento. Nessa conjuntura de instabilidade, os desafios e as oportunidades, que alcançam todos os agentes do complexo alimentar, devem induzir tipos de relações mais fidelizadas e formais, privilegiando as garantias asseguradas por terceiras partes.

Este novo arranjo comercial – garantia da segurança dos alimentos, compartilhada por todos, da fazenda a mesa do consumidor – cria compromissos reais e dinâmicos entre as partes. Esses compromissos elevam o nível da responsabilidade social, que, por sua vez, valida e acelera as salutares mudanças nos papeis dos agentes privados e públicos.

A BSE é, certamente, o mais expressivo desencadeador das adormecidas reformas sanitárias compromissadas pelos paises, em 1994, em Marraqueshe.
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1Enio Antonio Marques Pereira é Consultor

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