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Epidemia da vaca louca (parte 1)

João Carlos de Campos Pimentel1

O Mal da Vaca Louca é uma doença conhecida tecnicamente em português como Encefalopatia Espongiforme Bovina. A abreviatura que usaríamos seria EEB, mas optamos, neste trabalho, por usar a abreviatura inglesa, BSE. Estas são as iniciais de “Bovine Spongiform Encephalopathy”, o nome como internacionalmente ela é conhecida. A BSE é uma das várias Encefalopatias Espongiformes Transmissíveis (TSE, iniciais de “Transmissible Spongiform Encephalopathy”) causadas por um novo tipo de agente de doença, o prion patogênico, em várias espécies animais (incluindo a humana).

As TSE são um grupo de doenças cuja compreensão, na minha opinião, é dificultada por várias razões. Uma delas é exatamente a complexidade do comportamento do agente. Um agente de comportamento tão estranho que, embora não sendo vivo, se multiplica no hospedeiro causando sua morte. Que, embora sendo totalmente semelhante quimicamente a uma proteína normalmente codificada pelo próprio código genético do hospedeiro, “surge” algumas vezes como “do nada”, a partir de uma mudança aleatória na conformação espacial dessa proteína normal e causando uma doença fatal. Que, sendo ingerido por outro indivíduo, pode causar várias TSE específicas em diversas espécies animais após períodos de tempo extremamente longos (vários anos ou mesmo décadas após a ingestão). Cuja presença mais freqüente em algumas famílias de seres humanos e em algumas linhagens de animais mimetiza o comportamento de doenças genéticas. Que resiste a temperaturas e a radiações de alta energia capazes de destruir todos os outros agentes de doenças já conhecidos.

Além disso, a compreensão desse problema de saúde necessita de certos conceitos relacionados às doenças animais e humanas, seja ao nível do indivíduo ou ao nível da população. Assim, ao mesmo tempo em que fornecerei informações sobre a BSE (e outras TSE que ocorrem em populações animais e humanas), tentarei apresentar alguns conceitos que, acredito, poderão ajudar o “leitor interessado em pecuária” a fazer uma ligação entre o que já conhece das doenças humanas e animais “tradicionais” e estas “novas”, as TSE. Entre esses conceitos está o da “transmissibilidade” das doenças.

Transmissibilidade

Podemos dividir as doenças em dois grandes grupos: as causadas por agentes inanimados (“não-vivos”) e a causadas por agentes vivos. Entre as do primeiro grupo teremos que colocar muitos tipos diferentes de doenças. Por exemplo, as doenças causadas por deficiências minerais na alimentação. O fornecimento de sal mineral aos bovinos nada mais é que uma tentativa de prevenir uma série de deficiências minerais. A falta de fósforo e/ou de cálcio na alimentação, por exemplo, causa dificuldade de crescimento nos animais jovens. A falta de cobalto causa emagrecimento e falta de apetite. Da mesma maneira que a falta, o excesso de um nutriente pode prejudicar. Envenenamentos podem ser causados pelo uso inadequado de substâncias químicas usados no manejo do gado (como inseticidas, carrapaticidas e mesmo medicamentos), das pastagens (inseticidas, fungicidas, herbicidas) e de instalações (como agentes químicos de tratamento de madeira). O flúor presente naturalmente na água de bebida causa “manchamento” de dentes e enfraquecimento dos ossos em ruminantes que o ingerem em doses tóxicas. Também existem intoxicações causadas por tóxicos de origem biológica. Muito embora seja produzida por um agente vivo, a toxina produzida por fungos que se multiplicam em Brachiaria decumbens é uma molécula de proteína tóxica (“inanimada”) que irá causar, após uma série de transformações dentro do organismo dos bezerros que a ingerem, uma intoxicação que culminará com uma foto-sensibilização cutânea (conhecida como “requeima”). Um bezerro “intoxicado” não transmite essa doença para outro bezerro. Uma deficiência nutricional também não é transmitida para os companheiros de rebanho.

Em um sentido restrito, doenças “transmissíveis” são aquelas causadas por agentes vivos de doenças. Assim, elas podem ser adquiridas por um animal ou por um ser humano, através do contato físico direto com outro indivíduo (animal ou humano), que alberga o agente de doença. Ou ela pode ser adquirida indiretamente, através da contaminação do ambiente pelo agente de doença oriundo do indivíduo doente. Vale dizer, pela água, pelo ar, pelos alimentos ou por objetos contaminados. A isto podemos chamar de transmissão “horizontal”. A bactéria Brucella abortus, por exemplo, agente causador de um tipo de aborto epidêmico em bovinos, geralmente é adquirida pela fêmea suscetível (novilha ou vaca sadia e não vacinada) quando ela entra contato direto (lambendo líquidos fetais e a placenta, por exemplo, oriundos de uma vaca que alberga essa bactéria) ou quando ela ingere pastagens que foram, há algum tempo (até cerca de seis meses), contaminados pela placenta e/ou pelos líquidos fetais de uma fêmea doente. As doenças transmissíveis também podem ser “verticalmente adquiridas”, isto é, passar da mãe para a prole, quando da gestação ou da amamentação. A mesma Brucella abortus pode ser transmitida através da amamentação e durante a gestação (evento algumas vezes referido como “infecção congênita” ou adquirida “in utero”).

Em um sentido mais largo, as doenças de origem genética também são “transmissíveis”, pois problemas genéticos são transmitidos dos pais para os descendentes. No entanto, o termo “transmissível” normalmente é reservado para as doenças causadas por agentes vivos.

Hospedeiro e parasita

Quando um agente vivo (referido genericamente como “parasito”) invade um novo indivíduo, ocorre uma interação entre suas forças de ataque e as forças de resistência do animal ou do ser humano (referido genericamente como “hospedeiro”). Esta interação, ao ocorrer dentro organismo do hospedeiro, pode resultar em uma doença, em função de certas características do agente e do hospedeiro. Damos o nome de infecção a essa invasão e multiplicação dos parasitos dentro dos hospedeiros.

Muitas espécies de helmintos, fungos, bactérias e vírus – são agentes causadores de doenças transmissíveis. Estes agentes são extremamente diferentes entre si, embora todos tenham uma característica comum: possuem ácidos nucléicos próprios, específicos, que os tornam seres particularíssimos, diferentes de todos os outros. O que os torna “seres vivos” é o fato de apresentarem, em sua constituição, ou DNA ou RNA (ou ambos) e o usarem para se multiplicar, para se reproduzir.

A ação patogênica dos agentes de doença pode variar muito. Alguns vermes vivem dentro do tubo gastrintestinal (como o verme causador da hemoncose dos bezerros e novilhos). Outros vermes vivem dentro da árvore respiratória (como o que causa a pneumonia verminótica dos bezerros). Eles se alimentam de sangue (ou de líquido celular e extracelular ricos em nutrientes) com o único “objetivo”, se assim podemos dizer, de produzirem descendentes. Assim, enfraquecem os animais hospedeiros e o resultado é um conjunto de sinais reconhecido como a doença. A ação patogência também pode se dar através da produção de proteínas (quando da multiplicação do agente dentro do hospedeiro) que têm uma ação nociva direta sobre suas células e órgãos. Este é o caso do carbúnculo sintomático, da gangrena gasosa, do tétano e de muitas doenças causadas por bactérias infecciosas. Vírus, como os que causam a Febre Aftosa e a Raiva, agem invadindo as células do hospedeiro, liberando seu ácido nucléico dentro delas e obrigando a maquinaria metabólica celular a produzir novas partículas virais iguais a eles.

Para o parasita, o hospedeiro nada mais é que o ambiente em que vive. A relação hospedeiro-parasita é, pois, um fenômeno ecológico. No entanto, precisamos considerar não apenas a interação individual entre um parasita e um hospedeiro, mas também as interações entre as populações do hospedeiro e do parasita. Se o parasita consegue viver em mais que uma espécie de hospedeiro, aumenta então a complexidade dessa interação. Isto ocorre quando os parasitas ultrapassam as barreiras entre as espécies de hospedeiros.

A “barreira inter-específica” é a barreira natural que impede que um agente de doença que afeta uma espécie animal também acometa outra espécie animal. Agentes de doenças ultrapassam com maior ou menor facilidade essas “barreiras inter-específicas” criadas pela Natureza. O vírus da Febre Aftosa, por exemplo, invade indivíduos de espécies de animais bi-ungulados (animais de casco fendido como bovinos, bubalinos, suínos, ovinos e caprinos). Ele tem certa facilidade em transpor a “barreira inter-específica” que separa cada uma dessas espécies animais. Mas o vírus da Febre Aftosa não consegue, normalmente, acometer os solípedes (os eqüídeos, os asininos e os muares). Dizemos que existe uma “barreira natural” colocada pelas defesas orgânicas dos solípedes em relação à febre aftosa e que o vírus da Febre Aftosa não consegue saltar esta barreira. O vírus da raiva, por outro lado, consegue saltar as barreiras entre quase todas as espécies de mamíferos. Com a possível exceção dos morcegos hematófagos, todos os mamíferos – incluindo os seres humanos – podem ser acometios pela raiva.

Zoonoses

Quando se fala em seres humanos, precisamos introduzir o conceito de “zoonose”, uma classe particular de doenças animais. Zoonoses são aquelas doenças causadas por agentes que podem afetar indistintamente seres humanos e animais vertebrados. Vale dizer, são agentes que ultrapassam a “barreira inter-específica” que separa seus hospedeiros animais dos humanos.

Zoonoses podem ser transmitidas aos seres humanos a partir do contato físico com animais vertebrados vivos ou a partir do consumo de produtos deles originados. A raiva é um exemplo de zoonose adquirida a partir de contato físico, a mordida de um cão ou de um morcego rábicos (“doentes de raiva”). A salmonelose é um exemplo de zoonose que pode ser transmitida a partir do consumo de produtos animais. Os agentes causadores, bactérias do gênero Salmonella spp, podem estar presentes em carnes e/ou ovos de animais (mamíferos e aves). A brucelose é um exemplo de zoonose que pode ser transmitida através de ambos os mecanismos: consumo de produtos animais (leite ou queijo feito com leite de vacas brucélicas) e de contato com a placenta e os líquidos placentários e fetais liberados durante o parto de uma vaca brucélica (“que está doente de brucelose”). Veterinários, pecuaristas e peões costumam “tomar muito cuidado” quando lidam com rebanhos brucélicos ou de status brucélico desconhecido.

Todas esta informações aparentemente desconexas nos levam ao fato econômico que está por trás da crise criada pela BSE. As TSE geralmente são transmitidas dentro de uma mesma espécie animal porque, normalmente, os agentes causadores das TSE têm muita dificuldade em transpor a “barreira inter-específica”. Mas a BSE conseguiu realizar esta façanha em relação aos seres humanos. A BSE, uma nova doença que se pensava afetar apenas bovinos, mostrou que também era uma zoonose.

Uma das variáveis mais importantes na tomada de decisão para o consumo de qualquer produto, dentro do ponto de vista do consumidor, é exatamente o risco assumido quando se decide consumi-lo. A maior parte das pessoas, especialmente as bem informadas, exigem alimentos cujo consumo não traga risco nenhum a elas ou a seus filhos. É exatamente a “transmissibilidade” da BSE para seres humanos – a partir do consumo de produtos bovinos – que vem causando enorme consternação e prejuízo econômico em vários países do mundo, desde meados da década de 90. Mais especificamente desde março de 1996, quando funcionários do governo da Grã-Bretanha reconheceram que era extremamente provável que a BSE podia ser transmitida a seres humanos através do consumo de produtos bovinos. Da mesma maneira que veterinários, pecuaristas e peões se acautelam em relação à brucelose, muitos consumidores de carne bovina produzida no Reino Unido “passaram a tomar cuidado” com a carne bovina. Como resultado, o consumo deste produto caiu cerca de 30%. (continua em outro artigo)
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1 João Carlos de Campos Pimentel é médico veterinário, Assistente Agropecuário IV
da CATI-SAA-SP e membro do conselho técnico da ANAPECC (antigo Sindipec).

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