O rabino Gavriel Price conta com milhares de anos de leis judaicas como referência, quando está trabalhando para determinar se um novo produto alimentício pode ser certificado como kosher por sua organização, a União Ortodoxa.
Mas todas as regras sobre carne e leite, e a proibição de consumir carne de porco e nervos ciáticos, têm uso limitado, na mais recente missão de Price.
O rabino está encarregado de descobrir como a União Ortodoxa, a maior organização mundial de certificação kosher, deve lidar com a chamada “carne limpa” —carne criada em laboratório, com base em células de animais. Isso o coloca em contato com uma possibilidade que até recentemente pareceria impossível, na culinária judaica: bacon kosher.
Porção de bacon tradicional, feito com carne de porco – Divulgação
A carne limpa ainda não está disponível nas lojas, mas empresas iniciantes que trabalham em seu desenvolvimento dizem que isso talvez aconteça já no ano que vem. E quando o momento chegar, elas desejam um selo kosher em seus produtos, o que significa que eles respeitam a qualidade e os padrões de preparo kosher, e seguem um conjunto de preceitos bíblicos. Isso levou Price —alto, esbelto e pai de oito filhos— a Berkeley, recentemente, para reuniões com empresas desse segmento.
A carne limpa, também conhecida por nomes como agricultura de base celular, começa por células extraídas de um animal, muitas vezes células-tronco, preparadas para crescer. Quando essas células são isoladas, elas são colocadas em uma solução que imita sangue e encoraja a reprodução celular.
O processo é muito novo. O primeiro hambúrguer produzido em laboratório foi servido com muito alarde em 2013, e custou US$ 325 mil. Mas o número de empresas que concorrem para chegar ao mercado com o primeiro desses produtos está crescendo rapidamente.
A investigação de Price envolve questões que podem ocorrer a qualquer pessoa diante da carne limpa. O que ela é, exatamente? E deveríamos querer comê-la, um dia?
A primeira parada dele foi em um laboratório operado pela Mission Barns, uma startup com seis empregados e milhões de dólares em capital de investimento. A empresa está criando carne de pato, frango e porco em frascos transparentes, enfileirados dentro de incubadoras com temperatura controlada.
Ele observou no microscópio uma bandeja contendo células de carne de pato, e fez muitas perguntas básicas aos cientistas sobre a origem das células, e sobre o que era o líquido vermelho que as ajuda a crescer e se reproduzir.
“Eu gostaria de dedicar mais tempo a isso, porque creio que seja importante compreender o processo em profundidade, e não existem precedentes para isso, na verdade”, disse Price depois da visita.
A questão que ele está enfrentando é muito mais complicada do que o processo de classificar como kosher os substitutos de carne produzidos com base em vegetais, que já estão disponíveis nas lojas.
A Impossible Food, talvez a mais conhecida companhia desse segmento, criou um hambúrguer feito de ingredientes vegetarianos, mas que tem gosto de carne, graças a um processo químico envolvendo fermento e soja. Como a maioria dos produtos vegetarianos, esses hambúrgueres foram aprovados como alimentos kosher.
A Mission Barns, a startup de Berkeley, tem por foco criar gordura animal, o componente no qual muito do sabor característico da carne reside. Ela recentemente misturou essa gordura a outros ingredientes para criar salsichas de carne de pato, que serviu aos seus empregados e investidores. Criar produtos de carne mais estruturados, como um peito ou filé de pato,deve demorar bem mais.
Os ambientalistas e os defensores dos animais são proponentes da tecnologia porque ela pode produzir o sabor de hambúrgueres e salsichas sem as emissões de gases causadores do efeito-estufa e sem o sofrimento animal causado pelo sistema industrializado de criação de animais.
As autoridades judaicas esperam que o processo torne a carne kosher mais barata e mais confiável.
“Estou muito empolgado com isso”, disse o rabino Menachem Genack, que comanda a divisão de certificação kosher da União Ortodoxa. “O impacto para nós será muito profundo, no aspecto econômico da carne kosher”.
Há pesquisas que mostram que muitos americanos rejeitam a ideia de carne criada em laboratório. E a tecnologia já despertou questões que vão bem além da comunidade judaica.
A Associação de Pecuaristas dos Estados Unidos solicitou este ano que as autoridades do país permitam que o rótulo “carne” seja aplicado apenas a produtos de animais de abate. Embora as grandes empresas do ramo de carne estejam resistindo à pressão dos pecuaristas, em parte porque estão desenvolvendo seus produtos de carne limpa, não está claro se as autoridades regulatórias vão aplicar à carne produzida em laboratório as mesmas regras usadas para a carne tradicional.
As autoridades judaicas estão estudando o assunto porque diversas das startups de carne sintética têm sede em Israel.
Alguns rabinos israelenses disseram a uma dessas startups, a SuperMeat, que decisões anteriores de lei religiosa podem permitir que a carne limpa seja caracterizada como “pareve”, um rótulo religioso aplicado a coisas que são kosher mas não derivadas de animais.
O rótulo “pareve” significaria que judeus respeitadores das normas religiosas poderiam comer esses produtos em companhia de laticínios, como o queijo, que não pode ser comido com carne tradicional. Em outras palavras, um cheeseburger kosher se tornaria possível.
Genack, o chefe de Price na União Ortodoxa, inicialmente considerava que a carne limpa poderia ser “pareve”, com base na sua crença de que a carne limpa havia sido criada com base no código genético de um animal. Mas porque o processo envolve uma célula animal que se reproduz milhões de vezes, ele agora acredita que o produto deva ser rotulado como carne.
Quando Price visitou a Mission Barns, ele fez perguntas com aplicação específica à certificação kosher. Queria saber, por exemplo, se as células de carne de porco cultivadas em uma incubadora entravam em contato com as células de pato na incubadora ao lado, e se centrífuga qual as células de carne são processadas é limpada cuidadosamente entre uma tarefa de processamento e a seguinte.
Ele também queria saber se as células nos frascos mudavam ao serem replicadas, para garantir que não se tornem algo que já não se assemelha às células animais originais.
“A identidade de uma dada célula, e garantir que essa identidade seja preservada e verificável, seria crucial para que possamos certificar o produto”, ele disse.
No dia seguinte à sua visita à Mission Barns, Price participou de uma conferência realizada no Good Food Institute, organização que encoraja o abandono da carne animal.
Ele participou de longas conversas com pessoas que trabalham para startups de comida. Discutiram tópicos tão diversos quanto a classificação da gelatina sob as normas kosher, as decisões religiosas de rabinos da Idade Média, e os ingredientes da solução que encoraja a carne de laboratório a crescer.
“Uma célula precisa consumir apenas ingredientes kosher, para ser kosher?”, perguntou ao rabino Aryé Elfenbein, fundador da Wild Type, uma startup de San Francisco cujo foco são salmões criados em laboratório.
O rabino explicou que, do mesmo jeito que vacas kosher podem comer insetos não kosher, ele trabalha com a suposição de que a solução de crescimento não precisará ser certificada como kosher desde que seja removida da superfície das células finais.
Muitas das questões remetiam às células originais que são banhadas na solução. O rabino disse que essas células precisavam ser kosher, de um animal abatido de acordo com as normas, e que não podiam ser extraídas de um animal vivo. (Há uma lei judaica que proíbe comer animais vivos.)
Isso não foi bem recebido por algumas das companhias de carne limpa, que querem produzir algo que não envolva qualquer abate de animais.
A conversação mais animada envolvia pesquisas que buscam determinar se é possível derivar carne limpa de células da saliva ou dos pelos de um animal.
O rabino disse que essas substâncias não são carne, e por isso podem ser usadas para produzir carne limpa que não seria caracterizada como carne, sob as leis judaicas.
Eitan Fischer, presidente-executivo da Mission Barns, disse que esperava que, com química criativa, sua empresa conseguisse cultivar carne de porco que possa ser classificada como kosher.
“Se pudermos produzir bacon kosher um dia, por mais estranho que isso soe, creio que haverá muita empolgação a respeito”, ele disse.
Price reagiu com cautela. Além das leis quanto à dieta, há outras normas judaicas que alertam contra fazer qualquer coisa que crie a impressão de que as pessoas estão violando as normas religiosas.
O rabino acrescentou que existem textos religiosos que discutem a possibilidade de porcos kosher, quando o messias judeu chegar e der início à era da paz universal. Mas ele é cético quanto a isso.
“Vendo o mundo ao meu redor, não vejo muitas indicações de que estejamos vivendo em uma era messiânica”, ele disse.
Fonte: Folha de São Paulo.