Por Xico Graziano1
O ranço ideológico provoca um terrível equívoco na questão agrária do Brasil. Valoriza-se o “sem-terra” e se esquece do “com-terra”. O Estado pretende criar novos agricultores enquanto os tradicionais produtores ameaçam sucumbir. A reforma agrária está de ponta-cabeça.
Fortalecer os agricultores familiares já existentes no país, incluindo os assentados pela reforma agrária, deveria representar a equação fundamental da política pública. O grande desafio reside em manter seus empregos, garantindo renda suficiente para as famílias com-terra. Uma verdadeira política de desenvolvimento rural.
Nos EUA e na Europa, verifica-se nas últimas décadas acentuada redução do número de agricultores, mostrando uma nítida tendência de acréscimo da escala de produção no campo. Em 1935, os EUA apresentavam 6,8 milhões de produtores rurais, reduzindo para a metade na década de 60 e, na virada do milênio, para cerca de 2 milhões de agricultores.
A França viu seus agricultores caindo de 2 milhões, logo após a guerra, para 700 mil em 1994, diminuição verificada especialmente no final da década de 80. Como resultado, triplicou a área média das fazendas francesas, passando para 42 hectares, contra a média de 18,5 hectares nos 15 países da União Européia. Estudos mostram que a União Européia perde 3% da população agrícola a cada ano. Mesmo com subsídios fantásticos, minguou o número de produtores rurais em todos os países europeus.
Ora, conhecendo-se esse terrível processo de concentração e exclusão na agricultura mundial, fica claro que o grande desafio que se coloca, claramente, para o futuro próximo, se encontra na manutenção dos agricultores. E não em sua ampliação.
Ao contrário dos anos 60, quando se formulou o modelo do distributivismo agrário, a terra deixou de ser passaporte da felicidade. Que o digam os milhões de pequenos e médios agricultores, que há gerações cultivam seu pedaço de chão e hoje lutam desesperadamente para sobreviver na competição da economia global. Eles não podem fraquejar.
No passado, muito brasileiros foram criados e sustentados nos ganhos retirados da terra, pelo interior afora. O custo de vida era mais barato e a qualidade de vida melhor. Com a urbanização acelerada, tudo mudou. Ficou mais difícil extrair o sustento da labuta rural. Quem duvida basta perguntar para um sitiante brasileiro.
Hoje, mesmo fazendo tudo direito, com tecnologia e produtividade, ainda assim não é fácil garantir qualidade de vida. Produzir ainda se consegue. Mas na hora de vender, o preço não compensa e a renda obtida mal dá para pagar o adubo e os venenos utilizados na lavoura. A desistência ronda o lar do agricultor.
Estudos mais recentes, elaborados por uma equipe da FAO/Incra, baseados nos dados do IBGE, mostram a existência de 4,1 milhões de agricultores familiares no país. São produtores rurais tradicionais, que já se encontram na terra há décadas ou séculos, filhos, netos, descendentes da gente interiorana. Com suas famílias e agregados, formam um enorme exército de homens e mulheres dedicados, aplicados no trabalho, nem sempre reconhecidos pelo seu esforço. Aqui estão os trabalhadores com-terra do país.
Nos assentamentos de reforma agrária, desde 1985 até os dias atuais, pode-se contar, aproximadamente, mais 600 mil novos agricultores. Somados, os com-terra tradicionais e os sem-terra assentados representam 4,7 milhões de famílias. Esse contingente de pequenos agricultores já se encontra, em variados níveis, produzindo na agropecuária.
Os demais agricultores, maiores, chamados patronais, montam a 500 mil empresários rurais. Representam produtores modernos, profissionalizados, que alimentam as cadeias produtivas até atingir o consumidor nas metrópoles ou no exterior. No total, portanto, patronais ou familiares, 5,2 milhões de produtores comandam nossa agropecuária. Quase o dobro dos americanos e franceses, somados. Um verdadeiro batalhão rural.
Se, apenas e tão somente, o Brasil conseguir sustentar seus trabalhadores com-terra, os atuais produtores rurais, mantendo-os onde se encontram, trabalhando e vivendo, já terá crédito na História. O raciocínio mostra lógica elementar: ainda há tempo para evitar o desastre.
Quem gosta, ou se apieda, dos sem-terra, precisa entender que o drama dos com-terra exige prioridade na agenda política do país. Os primeiros estão sendo fabricados, manipulados, já perderam seus vínculos com a terra. Os segundos existem de verdade, são espontâneos.
O modelo da reforma agrária distributivista está superado pela História. No mundo da tecnologia, com mercados competitivos, não se fabricam agricultores facilmente. Ainda mais se os pretendentes não têm cultura rural.
Antes, há 50 anos, bastava uma enxada e vontade de trabalhar que o caboclo ia para frente. Nem tratores havia na agricultura. Hoje, além da aptidão, muita qualificação técnica se exige. Não adianta apenas boa vontade ou simpatia com a causa.
O trabalho rural é árduo, a pleno sol, quase sempre isolado, há ciclos de produção dados pela natureza. Tudo diferente das fábricas ou das ruas do comércio. Querer transformar um desempregado urbano num agricultor de sucesso ultrapassa os limites da agronomia. Não dará nunca certo.
Mais vale a pena investir tempo, planejamento e recursos no fortalecimento dos pequenos e médios agricultores tradicionais, os verdadeiros heróis esquecidos do país. A luta dos sem-terra distrai o raciocínio, divide a política e cria uma ilusão na sociedade. Uma idéia fora do lugar.
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1Xico Graziano é engenheiro agrônomo e foi presidente do Incra e secretário de Agricultura de São Paulo