A União Européia é um dos principais mercados de destino da carne bovina in natura exportada pelo Brasil. É também um dos mercados mais rentáveis para os exportadores brasileiros, já que os europeus compram principalmente cortes nobres e pagam preços significativamente superiores aos preços praticados nos demais mercados.
A sucessão de crises sanitárias da década de noventa levou as principais redes varejistas européias a assumirem uma função de coordenação das cadeias produtivas locais. Para reconquistar a confiança abalada dos consumidores, os grupos varejistas procuraram demonstrar que eles podiam atender as crescentes expectativas do público no que diz respeito à qualidade e à segurança sanitária.
Adotaram uma política de diferenciação da carne comercializada e montaram parcerias de fornecimento, alianças mercadológicas. As indústrias de abate e processamento, os grupos e cooperativas de pecuaristas foram levados a trabalhar em conjunto para aumentar a capacidade de rastreamento e conformar todo o processo de produção com a lista de requisito definida pelas empresas varejistas.
Através dessas alianças, as redes supermercadistas conseguiram dominar o fornecimento, implementar padrões de qualidade e regularidade, legislações de segurança e higiene, atendendo assim uma preocupação crescente dos consumidores com a origem e as características sanitárias da carne consumida.
Essas parcerias se tornaram fundamentais no funcionamento da cadeia bovina européia no período pós-crises sanitárias. Fizeram com que, graças ao apoio do varejo, os pecuaristas europeus que produzem carne de qualidade conseguissem reconquistar a confiança do segmento de mercado formado pelos consumidores de alto poder aquisitivo.
Hoje, essa política enfrenta uma crise profunda. As empresas varejistas francesas (que foram pioneiras nessa estratégia) estão renunciando às alianças mercadológicas criadas alguns anos atrás. Param de comercializar carne de qualidade de origem local. No Reino Unido, as parcerias implementadas entre pecuaristas, empresas de abates e varejo também estão moribundas. A reforma da política européia de subsídios e a lenta diminuição da oferta de carne mudam profundamente o cenário econômico europeu.
O produto de qualidade de origem local custa cada vez mais caro. Até o consumidor com alto poder aquisitivo começa a achar que o preço do filé de carne escocesa, francesa ou italiana passou dos limites. Nessas condições, as alianças mercadológicas criadas pelo varejo não são mais um dispositivo viável.
Só existe um caminho para superar essa crise e fazer com que as fileiras de qualidade sejam de novo um negócio rentável para o varejo e atrativo para os consumidores favorecidos da Europa: importar, montar parcerias com fornecedores não europeus, criar um canal de abastecimento que respeitaria todas as exigências do mercado final, desde a propriedade que se dedica à pecuária até as condições de desembarque da mercadoria no país europeu de destino.
Em outras palavras: o varejo europeu – que ocupa uma posição dominante na distribuição de carne- nunca precisou da carne brasileira tanto quanto agora. Mesmo assim, continua hesitando. As grandes empresas da distribuição (Carrefour, Tesco, Sainsbury, Ahold, Casino, etc…) sabem que a imagem da carne brasileira junto aos consumidores não é sempre positiva. Alguns supermercados ingleses ou italianos acabaram levando a sério as denúncias de ONGs que acusam os exportadores brasileiros de carne de contribuir com o desflorestamento.
Segundo essas empresas varejistas, os frigoríficos brasileiros estariam comprando animais de regiões que teriam sido desmatadas para abrigar pastagens. Os boicotes não vão muito para frente porque no contexto atual o Brasil aparece como um dos poucos exportadores que pode fornecer carne de qualidade.
No entanto, limitam a penetração do produto nacional e a capacidade da bovinocultura brasileira tirar proveito rapidamente de uma conjuntura muito favorável. Outro fator que leva os varejistas europeus a hesitar é a falta de confiança na capacidade da cadeia brasileira respeitar efetivamente todos os requisitos de segurança sanitária e qualidade exigidos pelos consumidores europeus.
Contatos que tivemos recentemente na Europa com esses compradores potenciais mostram que a desconfiança é tamanha. O varejo europeu não confia nos frigoríficos brasileiros, pois sabe que existem empresas do ramo que não valorizam a qualidade como deveriam valorizá-la.
Por outro, não considera como suficientes as múltiplas iniciativas regionais que visam aprimorar a segurança sanitária e a qualidade, pois sabe que os grupos de pecuaristas que estão por trás dessas iniciativas não têm como garantir o fornecimento de volumes suficientes de carne.
Para o varejo europeu, o parceiro brasileiro ideal seria uma rede formada por um clube de pecuaristas e frigoríficos visceralmente comprometidos pelas exigências de qualidade e segurança sanitária. Essa rede teria condição de fornecer volumes de carne compatíveis com as necessidades de mercados importantes e garantiria a cada um dos seus integrantes a justa remuneração dos esforços realizados.
As múltiplas experiências regionais que já existem no Brasil mostram que o país pode perfeitamente atender a demanda do mercado europeu. O que importa, é transformar essas experiências limitadas em estratégia coletiva capaz de convencer os atores centrais do mercado europeu que são as empresas varejistas.
Hoje, a bovinocultura brasileira deve escolher entre dois caminhos. Ou continua com a falta de coordenação que ainda caracteriza o setor. Isso pode levar a cadeia a perder a oportunidade fantástica de fechar uma parceria com as maiores empresas de distribuição do continente europeu. Ou entende que tem que superar contenciosos históricos para conquistar mais espaço nos mercados internacionais.
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Esse artigo é um resumo de palestra que Jean-Yves oferece aos profissionais brasileiros da cadeia de carne bovina.
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Nosso país, infelizmente, não tem por hábito fazer a lição de casa. Isto tem nos levado a grandes atrasos nas mais diversas áreas.
No setor de produção de proteína de origem animal não tem sido diferente. O quadro chega a ser triste, pois a desconfiança dos players europeus não é de todo infundada. Desde falhas na questão sanitária, até à produção a partir de áreas de desmatamento da Amazônia, passando pelo trabalho infantil, escravo ou análogo.
Chega a ser revoltante que seja realmente possível que estejamos comendo carne anabolizada ou oriunda de criações alimentadas com cama de frango. Está na hora de se levar a coisa a sério, mas me pergunto se vale mesmo a pena para o produtor colocar sua produção na Europa. Para o Brasil isto é inegavelmente bom, mas, particularmente, me daria por satisfeito em colocar minha carne na botique de carne do meu bairro, obviamente sendo satisfatoriamente remunerado por isso.
Com certeza, o mercado interno é muito importante. Mas, o que fazer com a quantidade de animais que produzimos? Não podemos colocar a culpa no setor, pela irresponsabilidade de amadores que, como em todo o meio, existem.
O que o setor de produção de carne precisa no Brasil é de uma transformação das leis vigentes e de uma maior fiscalização da cadeia produtiva, como o que está acontecendo com o setor leiteiro. Mas, para isso é necessário investimento no setor por parte de nossos governantes. Será que é de interesse de nossos próximos mandatários? É esperar para ver.
O governo precisa colaborar com o setor da pecuária de corte, não há dúvidas quanto a isso, mas não devemos esperar até que isso aconteça para que o setor passe a ter capacidade exportadora.
O que precisa começar a ser feito de imediato, é conscientizar os produtores no sentido destes se adequarem às novas formas de produção, com ferramentas tecnológicas e profissionalização do setor (que implica em aumento de custo de produção, mas é a única maneira de competir neste novo cenário mercadológico do setor de carne bovina).
União dos pecuaristas também poderia ajudar na hora de negociar com frigoríficos e empresas exportadoras. Quando o setor se organizar melhor e com mais seriedade e comprometimento, com certeza será visto com olhos mais crédulos por parte dos compradores da carne brasileira. Isso o governo não vai nos ajudar a fazer!!! Depende de nós!