Fechamento 12:01 – 04/10/01
4 de outubro de 2001
Frigorífico gaúcho está prestes a exportar carne bovina para a Bélgica
8 de outubro de 2001

Ponto de vista sobre o uso de cama de frango

Luiz Francisco Prata1

“Creio que, para enfrentar o desafio do próximo século, todos os homens terão de desenvolver uma noção mais ampla da responsabilidade universal. Cada um de nós precisa aprender a trabalhar não apenas para si próprio, para sua família ou para sua nação, mas para o benefício de toda a humanidade.”
Dalai-Lama (1998)

Há não muito tempo, neste mesmo “site”, os professores Paulo Roberto Leme e Celso Boin disponibilizaram uma série de três importantes artigos, que se complementavam, destacando inúmeros aspectos técnicos e educacionais sobre a utilização da “cama de frango” na alimentação de bovinos. Apesar de toda sua intencional isenção, em muitos fragmentos deixaram patente suas preocupações, procurando orientar para os cuidados necessários à essa prática.

Recentemente esse assunto retornou à mídia e, como docente, tenho sido questionado quanto à utilização e à proibição da utilização da “cama de frango” na alimentação animal. Opinar, mesmo que tecnicamente, dependendo do assunto e dos interesses envolvidos pode suscitar polêmica. Não costumo emitir opiniões nesses casos, entretanto, quando solicitado, até pelo dever de contribuir, não me permito a omissão. É o caso presente.

REITERADA A PROIBIÇÃO DA “CAMA DE FRANGO”

Não acredito em proibições e sim em processos educativos capazes de elevar níveis de consciência e atitudes frente aos mais variados problemas, apesar de todas as dificuldades inerentes. No caso específico, a proibição da utilização da “cama de frango”, na prática sabida e reconhecidamente incontrolável, tem duas finalidades principais: primeiro, de sincronizar adequadamente nossa legislação com os mecanismos internacionais de controle que abalizam a inserção e a aceitação de nossos produtos no mercado e a segunda, e mais importante, sinalizar ao setor pecuário sobre os esforços necessários para sua sintonia e adequação às exigências desse mesmo mercado.

O século recém-findo será lembrado como o do desenvolvimento científico e tecnológico. Na área de alimentos assim também o foi. Entretanto, como no caso de qualquer novidade, muito se excedeu, algumas vezes cruzando barreiras e limites da sensatez e aventurando-se por extremos antes eticamente inimagináveis ou, ao menos, inconcebíveis. Algumas conseqüências desagradáveis não tardaram a se mostrar e, a título de exemplo, convém relembrar o surgimento da BSE ou doença da vaca louca, da nova variante da doença de Creutzfeldt-Jacob em humanos, as dioxinas, os hormônios, os resíduos de antibióticos, as radiações,.. entre outros.

Essa experiência vivida, aliada a todas as demais, tem exigido da humanidade uma maior reflexão, conscientização e tomada de posição. Assim é que, mais uma vez na área de alimentos, o século que se inicia promete ser o do “Food Safety” ou da Segurança Alimentar.

INFORMAÇÃO: O QUE É “CAMA DE FRANGO”?

Composição: material orgânico de suporte (palha, casca, maravalha, sabugo de milho ou outros), fezes, urina, penas, restos de carcaças em decomposição, restos de alimentos fornecidos às aves, resíduos de substâncias utilizadas na alimentação de aves (antibióticos, quimioterápicos, promotores, etc.), terra, insetos, larvas, entre outros.

Aspecto: grosseiro, com partes aglomeradas ou compactadas.

Cheiro: pútrido, forte, malcheiroso, próprio de materiais orgânicos em diferentes estágios de decomposição.

Contaminação: altamente contaminado, com microbiota ampla e variada.

Microbiota dominante: bactérias entéricas, coliformes, bactérias encarregadas da decomposição de materiais biológicos, clostrídios, bolores, entre outros.

Potencial presença de patógenos: elevada possibilidade, principalmente de patógenos entéricos, clostrídios, micobactérias e algumas parasitoses.

Perigos biológicos: patógenos e eventuais toxinas (bacterianas e de fungos).

Risco biológico: elevado ou ALTO.

Perigos físicos: materiais estranhos e partículas outras não orgânicas (madeira, plástico, metais).

Risco físico: intermediário ou moderado.

Perigos químicos: resíduos e substâncias utilizadas ou apropriadas para uso na avicultura e indesejáveis em outras culturas animais.

Risco químico: elevado ou ALTO.
Avaliação geral do risco: ALTO.

Manipulação do material: cuidadosa. É aconselhável que as pessoas encarregadas da manipulação estejam protegidas com uniformes, botas impermeáveis, luvas de proteção e máscaras que impeçam a inalação de partículas em suspensão (pó ou poeira do material).

Destinação adequada: fermentação biológica tecnicamente conduzida, realizada em local e em condições apropriados para, ao final, ser utilizado como adubo orgânico. Mesmo assim (fermentado e relativamente inócuo), deve ser utilizado com cautela, levando em consideração o tipo de solo e suas características e sua adequação ao tipo de cultivar.

Não deve ser aplicado no preparo de pastagens, forrageiras ou cultivares utilizados na alimentação de ruminantes (ao menos até que sejam esclarecidos alguns aspectos relacionados à epidemiologia da doença da vaca louca).

DESINFORMAÇÃO: “TIRO NO PRÓPRIO PÉ”

As características descritas em nada lembram as próprias dos alimentos, seja para qualquer espécie.

Que a matéria existente no planeta seja quantitativamente invariável e naturalmente se recicle é sabido desde os postulados de Lavoisier. Entretanto, nesse aspecto, a natureza não dá saltos nem suprime etapas.

Dentro da cadeia alimentar os ruminantes, dentre eles os bovinos, constituem fabulosas máquinas capazes de “complexar” matéria e energia. Têm o privilégio de, a partir de matéria verde – ou capim, digerir fibras e delas produzir carne e leite. Essa capacidade é decorrente da existência de um trato digestório diferente do dos monogástricos, não só compartimentado e dotado de enorme capacidade, como também de uma fisiologia que lhes é própria.

Toda a potencialidade de uma raça ou cruzamento, seja para ganho de peso ou produção de leite, é razão direta do sutil e delicado equilíbrio que advém da capacidade de fermentar os materiais ingeridos e, deles, retirar os precursores e nutrientes necessários ao desenvolvimento e/ou produção. As fermentações que se processam dependem de inúmeros fatores, entre eles da microbiota, dos constituintes básicos do alimento, das quantidades de água e de saliva ingeridas com o alimento, da granulometria ou aspereza do alimento, etc., governando processos amilolíticos ou glicolíticos, proteolíticos, celulolíticos, lipolíticos, que alternam e combinam fermentações específicas como a láctica, acética, propiônica, butírica, etc., em que, para todas elas, o pH é fator essencial.

A simples introdução de concentrados, dependendo de sua granulometria, já oferece conseqüências que passam desapercebidas pelo produtor, mas que diminuem a eficiência dos processos digestivos com resultados óbvios. Por outro lado, materiais estranhos e a granulometria do alimento têm sido correlacionados com maior susceptibilidade dos animais a transtornos respiratórios no inverno, com conseqüências variáveis, e ao aumento da incidência de abscessos hepáticos diagnosticados quando do abate dos animais, com prevalência elevada em vacas leiteiras.

Retrospectos epidemiológicos têm implicado os alimentos, as mudanças fermentativas ruminais e a agressão às paredes do rumem como responsáveis por tais situações.

É natural que animais com a fisiologia digestiva, respiratória e/ou hepática comprometidas serão incapazes até de dar vazão à potencialidade zootécnica, diminuindo a produção. É o tiro saindo pela culatra.

EUFEMISMO

Na realidade, “cama de frango” nada mais é do que um eufemismo tecnicamente mal empregado para referir-se ao que antes se conhecia como esterco, de composição extremamente variada em que, invariavelmente predominam fezes, restos de carcaças (cadáveres), resíduos da criação (os mais variados), entre outros. Não há a necessidade de muita inteligência para classificá-lo como um material sujo, senão imundo, que deve ser manipulado com cuidados. Sua utilização natural, como sempre o foi, e mesmo assim com critério e conhecimento, é como adubo orgânico, a se decompor naturalmente no solo, adequando-o qualitativa e quantitativamente a solos e cultivares, cujos benefícios possam efetivamente ser maiores que os eventuais problemas.

Aproveitá-lo para “alimentar” animais produtores de carne ou leite corresponde a uma simplificação inimaginável dos valores éticos e humanitários, pervertendo oportunisticamente relações milenares, com extremo descaso não só a essas espécies animais, mas principalmente aos mais elementares direitos do próximo, ou seja, do consumidor.

Entre outras, são práticas como essa que entravam e obstruem a evolução, impedindo que a cadeia da carne bovina se desenvolva inserindo atributos que possam ser reconhecidos e valorizados pelo consumidor, a exemplo de tantos outros produtos. Enquanto isso não acontece, continuaremos consumindo “carne de vaca”.

Tem sido cada vez mais freqüente a insatisfação do consumidor, agregando novos problemas como os de cor, odor e sabor estranhos ou anormais na carne. Não há dúvidas de que esses problemas sejam decorrentes do descaso e das práticas oportunistas empregadas na produção animal (alimentos alternativos, “cama de frango”, chorume de suínos, aditivos alimentares os mais variados, etc.), que desrespeitam a fisiologia animal.

Deixar-se surpreender por secas ou geadas, nas nossas condições, denota a falta de profissionalismo com que parte do setor agropecuário deste país ainda trata a sua atividade. É essa mentalidade que precisa evoluir com urgência, ampliando horizontes, não só para que se coíba a concorrência desleal na cadeia produtiva, como também assegure o atendimento aos quesitos de qualidade e de segurança alimentar que possibilitam perspectivas de exportação e de consolidação de mercados.

CONCLUSÃO

Embora técnica, essa é uma opinião particular. Não se espera concordância, mas solicita-se reflexão. Em caso de dúvidas, procure reunir suas crianças e explique-lhes que o hambúrguer de sua preferência, ou o leitinho diário, provêm de animais alimentados deliberadamente com fezes. Com certeza, no mínimo eles acharão tratar-se de mais uma de suas brincadeiras.

… e pensar que há bem pouco tempo houve quase uma comoção nacional em defesa do boi verde…

“Que vivamos poucos anos ou um século inteiro, seria lastimável e triste passar esse tempo agravando os problemas que afligem as outras pessoas, os animais e o ambiente. O mais importante de tudo é ser uma boa pessoa.” Dalai-Lama (1998)

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1 Médico Veterinário, Mestre e Doutor em Tecnologia de Alimentos.

Departamento de Medicina Veterinária e Reprodução Animal

Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias – UNESP – Jaboticabal, SP.

0 Comments

  1. Lauro Spessoto Goulart disse:

    Caro amigo Prata:

    São artigos como este que engrandecem a medicina veterinária, e nos envaidece.

    Foi uma honra ter compartilhado os anos de faculdade com o brilhante articulista.

    Parabéns pelo artigo Prata!

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