Finalmente, em um enorme salto de qualidade para toda a agropecuária brasileira, foi lançado no mês de Janeiro o Sisbov (Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina). O sistema permitirá o rastreamento dos animais desde o nascimento até o momento em que a carne é processada para ir à mesa do consumidor.
O Sisbov é constituído de uma série de ações, medidas e procedimentos adotados para caracterizar a origem, o estado sanitário, a produção e a produtividade da pecuária brasileira, e a segurança dos produtos provenientes dessa atividade. O cronograma para a implantação de dispositivos da rastreabilidade tem os seguintes prazos: propriedades voltadas à produção para o comércio com a União Européia devem integrar o Sisbov até junho deste ano; criadores cuja produção esteja direcionada aos demais países precisam aderir ao sistema até dezembro de 2003; todos os pecuaristas dos estados livres de febre aftosa ou em processo de declaração deverão estar integrados até dezembro de 2005; e os demais até dezembro de 2007.
Em parte por pressão da União Européia, cuja legislação exige que toda carne importada seja rastreável a partir de junho deste ano, frigoríficos exportadores e a Abiec já há algum tempo estavam trabalhando na elaboração de um sistema de rastreabilidade para o gado destinado à exportação.
A maioria dos pecuaristas, no entanto, tem ainda suas dúvidas, principalmente em relação aos custos que a rastreabilidade pode acarretar. Por isso, uma das exigências da iniciativa privada ao Ministério da Agricultura foi a não-obrigatoriedade imediata do Sistema, ou seja, a adesão dos criadores por enquanto é voluntária.
A parcela da carne produzida no País e que é exportada ainda não passa dos 10%, mas a importância que a exportação adquiriu nestes dois últimos anos, no Brasil, tem causado uma reviravolta na mentalidade de frigoríficos e produtores. O País está abrindo os olhos para o mercado externo e descobrindo seu imenso potencial e competitividade na produção de carnes, não só a bovina, mas avícola e suína. O Brasil desperta hoje um enorme interesse como País produtor, e um grande temor na concorrência mundial. Em relação à carne bovina, já somos o terceiro exportador mundial, atrás apenas dos EUA e Austrália, mas, segundo especialistas, estaríamos no primeiro lugar do ranking por volta de 2005.
Longe do estereótipo caipira, os produtores assumiram a posição de empresários rurais conectados às notícias e novidades do mercado, e muitos tomaram iniciativas para a melhoria da qualidade na administração de suas empresas, na produtividade de suas propriedades e na melhoria de seus rebanhos.
A rastreabilidade é o próximo e inevitável passo, e, além de ser um suporte para o controle da qualidade em todas as etapas de produção, pode ser uma poderosa ferramenta de marketing para frigoríficos e pecuaristas na conquista de novos mercados, não necessariamente no exterior, mas também no mercado interno brasileiro.
Os custos da rastreabilidade são mínimos perto dos benefícios. A médica veterinária Cristina Lombardi, uma das responsáveis pelo sistema aprovado pelo Ministério, e uma das maiores especialistas no assunto hoje no Brasil, lembra que a rastreabilidade não tem necessariamente um alto custo. No lugar de chips eletrônicos e computadores com softwares sofisticados, o rastreamento pode ser feito com uma prancheta e planilha de acompanhamento de cada animal e um número de identificação que pode ser brinco ou mesmo marca a ferro no couro de cada boi.
No Mato Grosso do Sul, a Associação Sul-Matogrossense de Criadores de Novilho Precoce entrou no programa de qualidade da rede Carrefour, que inclui a rastreabilidade como um dos requisitos em seu caderno de encargos. De quebra, fechou um contrato de fornecimento com a rede de restaurantes Montana Grill, empreendimento da dupla Chitãozinho e Xororó.
Recentemente, representantes da Associação estiveram em tour pela Europa divulgando seu programa de rastreabilidade e qualidade, tentando conquistar a confiança dos importadores.
Na Argentina, onde várias Associações de Produtores exportam com marca própria, usando frigoríficos apenas como prestadores de serviço, a rastreabilidade é uma forma de atrair clientes internacionais. Antes que as exportações argentinas fossem bloqueadas em razão dos focos de aftosa no país, estas Associações de criadores fecharam acordos com importadores para o fornecimento a importantes redes de supermercado na Europa.
Na França, o frigorífico Soviba, em acordo com uma rede de supermercados da região parisiense, resolveu usar a rastreabilidade como uma forma de restaurar a confiança do consumidor, apavorado pelo mal da vaca louca.
A Soviba implantou a rastreabilidade inicialmente para atender às exigências de clientes alemães, o mercado mais importante para a carne francesa. A rastreabilidade é feita, como no Brasil, por lotes de animais. No caso específico desta rede de supermercados, o lote reduzia-se a um animal, ou às suas duas meia-carcaças. Após processada, a carne era enviada ao supermercado em bandejinhas, em cuja etiqueta constava um número de rastreabilidade. No supermercado era colocado um terminal internet ligado ao banco de dados do Soviba, e, quando digitado o número da bandejinha, podia-se visualizar na tela o animal de onde vinha a carne, e o nome do produtor assim como sua fazenda. Além disso, o terminal punha à disposição dos consumidores informações nutricionais e receitas. Isso pode ser visto nos sites do Soviba – www.soviba.com e www.soviba.fr.
O Soviba está também estudando uma forma de retornar informações aos produtores. Usando a rastreabilidade, cada produtor poderá ser informado sobre o destino de sua produção, assim como sobre o desempenho e rendimento de carcaça de seus animais, uma informação preciosa na melhoria e seleção do rebanho.
Hoje existe uma guerra comercial entre a União Européia e países exportadores de produtos agrícolas, representados principalmente pelo Grupo de Cairns, do qual o Brasil faz parte.
Enquanto os europeus querem proteger ao máximo seu mercado interno, preservando sua cadeia agroindustrial, os países exportadores exigem a redução até a eliminação de todas as barreiras protecionistas impostas a seus produtos.
Pelos avanços conseguidos em Doha, durante a última reunião da Organização Mundial do Comércio, espera-se que as barreiras tarifárias sejam efetivamente reduzidas ao longo desta rodada de negociações. O provável, no entanto, é que a Europa, se não conseguir limitar a entrada de produtos agrícolas importados em seu mercado pelo uso de barreiras tarifárias, talvez o faça pelo uso de barreiras não tarifárias.
Ou seja, poderemos esperar cada vez mais exigências em relação à proteção ao meio ambiente, ao bem-estar animal, ao aspecto social da agricultura e, é claro, à rastreabilidade.
Já houve enfáticas manifestações de produtores rurais e de agroindústrias em países como França e Irlanda contestando a confiabilidade e a confiança que se pode ter sobre a carne importada.
Talvez, no futuro, para conseguirmos entrar no mercado europeu tenhamos que adotar sistemas cada vez mais completos e seguros de rastreabilidade. E porque não começar agora, aproveitando essa mesma rastreabilidade como arma para conquistar outros mercados?