Pedro Eduardo de Felício1
A criação, reestruturação, fusão e extinção de divisões, institutos e organizações, conforme as necessidades de uma época, são ocorrências comuns na história da administração pública e privada.
No mundo moderno, tais eventos, espaçados no tempo a intervalos cada vez mais curtos, não deveriam causar o espanto que está causando agora a denúncia unilateral de um convênio pela SAA – Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, que poderá levar à desativação do Fundepec – Fundo de Desenvolvimento da Pecuária de Corte, se houvesse diálogo e atitudes conciliatórias.
O Fundepec
Fundepec é uma organização não governamental, criada em 1990 por lideranças da pecuária e da indústria da carne, para agilizar as ações no combate às doenças do gado bovino, principalmente a febre aftosa.
O que foi construído
Com recursos oriundos das GTAs (guias de transporte de animais para abate) recolhidas ao Fundepec pelos pecuaristas, sob o amparo da Lei n. 8.145, de 18/11/92, foram contratados funcionários, veículos foram reformados ou adquiridos novos. Também foram informatizados os escritórios da defesa sanitária da SAA e, em cooperação com ela, realizaram-se campanhas de vacinação, treinamento de pessoal, e fiscalização de barreiras, que permitiram ao estado reivindicar e obter, em maio último, o certificado de zona livre de aftosa com vacinação e, obviamente, vigilância constante.
Certo e errado
Hoje se pode dizer que se o estado está livre de aftosa é porque o Fundepec cumpriu sua missão. Portanto, não haveria mais razão para continuar recebendo a taxa das GTA e poderia fechar suas portas sem quaisquer prejuízos. Certo?
Certo do ponto de vista da SAA, que enviou um projeto de lei de defesa sanitária à Assembléia Legislativa que, se aprovado, vai acabar com a isenção de taxas de vigilância para os pecuaristas, hoje isentos porque recolhem para o Fundepec. E, como se não bastasse, deu um prazo de 90 dias a contar da data do ofício – 11/08/00 – para extinguir o convênio com o Fundepec.
Com esses atos a SAA corta o suprimento de ar que a organização não governamental respira.
Errado do ponto de vista dos pecuaristas, que não estão convencidos de que a SAA tenha condições de manter as medidas de segurança necessárias para que a febre aftosa seja definitivamente erradicada.
A crise vivida atualmente pela Argentina, que se descuidou das barreiras, aí está, com as graves conseqüências comerciais, para servir de exemplo.
Os criadores sabem que a administração direta do estado não opera com a flexibilidade da iniciativa privada, principalmente para contratar profissionais com salários competitivos. A esse respeito, constata-se que mesmo as universidades públicas do estado, que são autarquias responsáveis pelas próprias políticas salariais, estão perdendo alguns de seus melhores quadros, docentes e não docentes, para a iniciativa privada.
Dividendos positivos para o agronegócio da carne
Considerando-se que, além do combate à aftosa, há outros projetos cooperativos, como os de raiva, brucelose, tuberculose e teníase-cisticercose, com envolvimento do Fundepec, SAA, Ministério da Agricultura e universidades, que poderão render dividendos significativos para o agronegócio da carne bovina.
Considerando-se, ainda, o que o secretário João Carlos de Souza Meirelles escreveu em artigo publicado na revista Pesquisa Fapesp, de dezembro de 1999: “O agronegócio é (…) fronteira tecnológica a exigir a participação integrada de todos os setores da atividade econômica”
É o caso de perguntar, então, se a SAA, que o Eng. Meirelles dirige com rara maestria, não estaria precipitando-se em apor o garrote no pescoço daquele que é um fundo de desenvolvimento da pecuária e, como tal, tem sido extremamente útil para a integração da cadeia produtiva da carne.
A mesma cadeia que representa o mais valioso agronegócio da região Centro-Oeste, que tem se inspirado no modelo de abordagem de São Paulo, para criar parcerias entre governo, pecuária, indústria e comércio de insumos, carnes e derivados em alguns estados.
Estratégia de ações concatenadas
Entretanto, não se pode ignorar que a SAA que, por anos a fio, caracterizou-se pela imutabilidade organizacional e baixa eficiência funcional, atravessa um período de notável modernização, apesar do desgaste natural dos quadros não renovados e da falta de recursos financeiros.
A reestruturação da área de Defesa Sanitária e a criação da APTA – Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios, em maio deste ano, são alguns exemplos de transformação positiva que começam a se tornar visíveis para a sociedade.
Pode-se deduzir, hoje, pelos movimentos das peças no tabuleiro, que existe uma estratégia nas ações, ou seja, um projeto bem delineado norteando as mudanças na SAA.
Vai ficando um pouco mais claro, também, onde a SAA pretende conseguir os recursos necessários, ou as fontes de financiamento, para fazer deslanchar o projeto.
Como hipóteses mais que prováveis, vislumbram-se:
* as elevadas taxas a serem cobradas dos pecuaristas nas transações comerciais com animais, embutidas no Projeto de Lei n. 377/00 aprovado para votação (pasmem!) em regime de urgência;
* a FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, e
– a prestação de serviços de análises laboratoriais e de certificação, que a própria SAA passaria a exigir em troca do que está sendo chamado de Selo São Paulo de Qualidade.
Se esta for realmente a estratégia, e se o projeto se materializar, com uma ou mais agências operando em moldes diferentes da administração direta, no que se refere à contratação de funcionários, aquisições e alienações, é compreensível que a SAA queira encerrar a cooperação com o Fundepec.
Transição
Mas aí cabe outra pergunta: não seria muito mais prudente promover uma transição negociada da situação presente para a almejada?
A título de exemplo, o Fundepec teria um prazo – com volume decrescente de arrecadação de taxas de vigilância – para encontrar suas próprias fontes de financiamento, por exemplo, nos serviços que vem prestando na área de comercialização de gado e carne, onde já é, provavelmente, a mais competente organização do País. Enquanto isto a SAA teria tempo de demonstrar que está aparelhada para desempenhar as funções a que se propõe na Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo, que nas palavras do coordenador da área, Veterinário Júlio César Pompei, requer “grandes investimentos, recursos disponíveis e agilidade em tempo real e de forma permanente” (Informativo Fundepec, jan./mar./2000).
Parece até simples, pensando deste modo, ou seja, com objetivos comuns e desprendimento, chegar-se a um acordo. Entretanto a questão fundamental a responder é se as premissas aqui assinaladas são consensuais. E, se forem, saber se as partes envolvidas estariam dispostas a discutir o assunto e fazer concessões.
Os pecuaristas e a sociedade merecem uma resposta urgente.
(NOTA: este texto já estava escrito na noite de 23 de agosto, quando surgiu a triste notícia de um possível surto de aftosa em Jóia RS. Será realmente lamentável se o fato vier a ser confirmado* depois de tanta comemoração a respeito do certificado de área livre sem vacinação.)
O Jornal da Globo também mostrou gado tucura cruzando a fronteira do Paraguai com o Brasil, apesar da presença das tropas do exército na área. Triste país.
*foi confirmado – nota do editor.
1 felicio@fea.unicamp.br
Professor-adjunto da Faculdade de Engenharia de Alimentos /UNICAMP.
Presidente da Associação Brasileira de Ciência de Carnes
19 788 3990, 19 296 1148, 19 9103 6941
Editado pela equipe de engenheiros agrônomos da Scot Consultoria.
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