Marcos Sawaya Jank
A confirmação de George W. Bush como 19o Presidente Republicano dos Estados Unidos traz uma série de indagações sobre o futuro das relações comerciais Brasil-EUA, a postura norte-americana nas negociações da OMC e a questão da consolidação da ALCA e/ou expansão do NAFTA.
Qualquer que seja a direção a ser tomada pelo próximo governo americano, é certo que a agricultura ocupará local de destaque em qualquer agenda de negociação do Brasil e do Mercosul. Em 2000, os EUA gastarão quase 30 bilhões de dólares em pagamentos governamentais aos seus agricultores, atingindo o recorde histórico de 60% de subsídios na renda líquida do setor! Grande parte destes recursos é distribuída no formato de “ajudas emergenciais”, pagamentos diretos e garantia de preços mínimos, quase sempre usando artimanhas para escapar dos limites impostos pelo Acordo Agrícola da Rodada Uruguai do GATT.
O curioso dos subsídios norte-americanos é que eles na realidade beneficiam basicamente os 17% de produtores que comercializam acima de US$ 100 mil por ano, e que respondem pelo incrível montante de 80% do valor da produção agropecuária dos EUA. Num universo de mais de 2 milhões de produtores rurais (no Brasil são quase 5 milhões!), apenas este seleto grupo de pouco mais de 300 mil privilegiados ganha dinheiro com a atividade agropecuária. Os demais 83% dos produtores vêm acumulando prejuízos sucessivos com a agricultura e apenas permanecem no campo porque dispõem de outras fontes de renda (empregos não agrícolas na família, propriedades cujo objetivo declarado é residência ou lazer, aposentadorias, etc.).
O escandaloso apoio a essa casta de privilegiados (possivelmente superior a todos os programas governamentais de ajuda aos carentes nos EUA) remonta às políticas do New Deal de Franklin D. Roosevelt, no início dos anos 30. A Grande Depressão levou o governo a adotar políticas de controle de oferta e de garantia dos preços e renda dos agricultores, complementadas por tarifas e quotas restringindo importações. Posteriormente, os inevitáveis excedentes formados foram exportados por meio de programas de “ajuda alimentar” e fartos subsídios e crédito governamental.
Tais políticas acabaram eternizadas pela forte pressão política dos seus beneficiários (proprietários de ativos agrícolas, grandes produtores, burocratas do governo, lobístas e políticos ligados ao setor), mesmo já não tendo qualquer justificativa minimamente razoável nos dias atuais. Basta dizer que elas foram criadas para um setor que respondia por um quarto da força de trabalho no entre-guerras, e hoje representa apenas 1%. E o maior anacronismo está no suporte ainda baseado no preço garantido por tonelada produzida (ou o similar pagamento direto por hectare) que sobre-subsidia os grandes produtores, não resolve o problema dos pequenos e “arrebenta” com os concorrentes no mercado mundial.
Porém, o que chama a atenção na leitura da história da política agrícola dos EUA é o fato de que as tentativas de reforma quase sempre foram comandadas por governos ou congressos Republicanos. A principal delas foi a última Lei Agrícola de 1996, popularmente denominada Freedom to Farm, votada por um congresso majoritariamente republicano e que fracassou dois anos mais tarde, com a queda dos preços mundiais, após a crise asiática, e com o tentador superávit fiscal em ano eleitoral.
Assim, a vitória de Bush teoricamente traz três oportunidades para a agricultura brasileira: a) a possibilidade de uma reforma mais profunda nos obsoletos mecanismos de subsídio doméstico aos agricultores a partir de 2003; b) uma maior possibilidade de concretização da ALCA, onde a agricultura brasileira é ganhadora, já que os democratas, sustentados pelos sindicatos de trabalhadores, sempre foram mais resistentes a novos blocos; c) uma postura mais favorável ao avanço das negociações da OMC na linha tradicional, já que Bush claramente se opõe ao uso de questões ambientais e trabalhistas como veículos de sanções em acordos comerciais, posição também defendida pelo Brasil.
Por outro lado, vários fatores mostram que talvez os ventos não soprem tão a favor dos nossos interesses agrícolas. Primeiro, porque 30 bilhões de dólares anuais para a “agricultura” não são grande coisa num País que prevê um superávit fiscal médio de 460 bilhões anuais nos próximos 10 anos. Esse talvez seja o “preço político” a ser pago para manter alguns estados mais “agrícolas” alinhados ao governo. Segundo, porque o Congresso e o Senado norte-americanos estarão mais divididos do que nunca, e áreas de livre comércio são temas impopulares, que poderão diminuir a frágil condição de governabilidade com que Bush chegará à Casa Branca. Comércio exterior em geral, e a questão do NAFTA-ALCA em particular, foram assuntos jogados para segundo plano durante toda a campanha, e provavelmente o continuarão sendo no novo Governo.
Neste cenário ainda nebuloso deixado pela confusão eleitoral na Flórida, e após o intempestivo lançamento do Tratado Bilateral de Livre Comércio entre o Chile e os EUA, a única certeza é que a sociedade brasileira deveria doravante definir mais claramente o que quer. Para isso, é imperioso desenvolver estudos que nos permitam construir cenários prospectivos para as políticas do Governo Bush, a factibilidade da ALCA, o futuro da OMC, entre outros. É também essencial a participação mais ativa das várias entidades empresariais nos foros internos em que são discutidas e formuladas as posições negociadoras do País. Precisamos saber o que os nossos principais setores econômicos têm a ganhar e a perder em cada cenário, para então estabelecer os marcos de uma integração comercial com os demais parceiros do hemisfério, e com os EUA em especial, que traga reais benefícios para o Brasil e o Mercosul.
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Marcos Sawaya Jank é professor da Universidade de São Paulo (ESALQ-PENSA) e Pesquisador Visitante na Georgetown University e no Center for Strategic and International Studies (CSIS) em Washington D.C. (email: msjank@usp.br)