Tem coisa mais cringe do que relembrar publicamente as delícias de uma feijoada bem degustada ou convidar um grupo de jovens antenados de classe média para um churrasco?
Tal como a fluidez de gênero (mesmo quando ele é bem definido) e barbas shapeadas para eles (ou elas, ou elus), ser vegano faz parte do pacote de comportamento contemporâneo que é praticamente obrigatório.
Os pobres vegetarianos já ficaram perdidos na noite dos tempos. Coisa de quem nasceu antes dos anos noventa e ainda se liga em produtos proibidões como queijos ou ovos.
Globalmente, o consumo de carne está aumentando, em especial por causa dos novos mercados que insuflam o poder aquisitivo e podem bancar proteínas caras.
Mas nos bolsões de vanguarda, a carne vai enfraquecendo. E não existe centro mais irradiador de modismos do que a Califórnia, onde a possibilidade de que falte bacon – tão americano quanto hambúrguer – está sendo cogitada a sério.
O motivo é uma lei aprovada em plebiscito em 2018 e que entra em vigor no próximo ano, estabelecendo regras sobre a criação humanizada, principalmente no que se refere ao espaço maior para porcos, galinhas e bezerros usados para fornecer a carne de vitela.
Pelas novas regras, uma porca destinada à procriação deve ter um espaço de pelo menos 2,2 metros quadrados, o suficiente para poder se virar e estender as patas (se as pessoas soubessem como são feitas as salsichas, teriam um nível muito mais baixo de tolerância com a criação em massa).
A lei do porco feliz pode aumentar o custo de produção em 15% e, evidentemente, pressionar o preço da carne de porco – a mais consumida em todo o mundo. Um produtor entrevistado pela agência AP calculou que no espaço onde cria 300 porcos, haveria uma redução para 250 animais.
A consultoria contratada pelos produtores para tentar segurar a legislação – ou conseguir auxílio do governo – projetou um aumento de preço de até 60%.
Disposição para pagar mais e comer menos carne é uma tendência que aparece em pesquisas nos países desenvolvidos,. Na França, que deu ao mundo delícias sublimes como o foie gras e o steak tartar, uma pesquisa indicou que 48% dos entrevistados reduziram (ou disseram ter reduzido) o consumo de carne e 30% querem diminuir mais ainda.
Em maio, foi introduzido o dia sem carne nos cardápios das escolas e dos órgãos públicos. A recomendação para o uso de menos carne faz parte do novo programa de combate às mudanças climáticas e, na definição da ministra da Transição Ecológica, Barbara Pompili, da “mudança cultural” que o governo Macron quer convencer a população a abraçar.
A carne é acusada de múltiplos pecados: éticos, no que tange à justificativa para consumir mamíferos superiores criados para o abate; sanitários, considerando-se as constantes recomendações para a redução do consumo em nome da preservação da saúde, e, principalmente, ambientais.
A associação entre a criação de gado e o aumento dos gases que produzem o efeito estufa é um dos argumentos mais empregados para contrabalançar a alta eficiência energética e a satisfação gustativa que o consumo de carne oferece.
Há pelo menos dez mil anos, onde os humanos vão, vai junto uma coorte de aves, caprinos, ovinos ou bovinos, quando não todos eles juntos. Com a população global batendo em oito bilhões, são sustentáveis mesmo os métodos mais controlados – e humanizados – de produzir proteína animal?
As alternativas para quem não quer ou não pode simplesmente viver de vegetais por enquanto não são consistentes.
Uma das mais recentes foi feita pela empresa israelense que criou a marca Redefine Meat de substitutos da carne que usa impressoras 3D para tentar transformar produtos feitos com proteína de soja, óleo de coco e óleo de girassol em hambúrgueres ou kebabs que convençam carnívoros renitentes a fazer a troca.
Os resultados ainda não são totalmente convincentes, mas o CEO da empresa, Eshchar Ben-Shitrit, fez para o Times of Israel uma previsão ousada: “Dentro de dez anos, nós vamos olhar para trás e pensar que era uma loucura criar e sacrificar animais para desfrutar de comida boa”.
Israel é o país do mundo com a maior proporção de veganos “convertidos”, cerca de 5% da população (na Índia, onde as religiões tradicionais condenam a morte de animais, são 400 milhões de vegetarianos).
É impossível imaginar um lugar como os Estados Unidos, o maior consumidor de carne do mundo (98,6 quilos per capita por ano, à frente de Austrália, Argentina e Uruguai) sem hambúrgueres, ovos com bacon e costelas que parecem saídas de dinossauros.
Mas não é aconselhável ignorar as mudanças culturais mencionadas pela ministra francesa.
Com o aumento do padrão de vida, o consumo de carne dobrou entre 1988 e 2018 e poderia bater em 570 milhões de toneladas em 2050, num mundo “invertido”, dividido entre ocidentais vegetarianos, orientais carnívoros e californianos quase desencarnados para os quais o bacon seria apenas uma memória distante de tempos bárbaros.
Fonte: Blog Mundialista, revista VEJA.