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Comportamento de ‘vaca louca’

Marcos Sawaya Jank

É muito positiva a grande comoção nacional que se seguiu à atitude intempestiva do Canadá de proibir as nossas exportações de carne bovina, pelo “risco téorico” da presenca da doença da vaca louca no rebanho brasileiro. Era mais do que hora da midia em geral, e o cidadão comum em particular, tomarem conhecimento e opinarem sobre questões ligadas ao comércio e às relações internacionais. Igualmente, é fundamental que o Governo e as entidades empresariais reajam energicamente a atitudes “rasteiras” deste tipo, como o fizeram.

No entanto, precisamos saber que este episódio não passa de um rápido ataque sofrido pelo Brasil num jogo extremamente pesado, que ainda vai durar muito tempo, no qual o nosso time no geral joga menos preparado e equipado, e o Juiz, quando presente, tende a favorecer os times mais fortes. Assim, analisemos então quais serão os próximos lances e partidas, com ênfase no tema do comércio agrícola. No jogo global do comércio, a agricultura é sem dúvida a modalidade onde as regras são menos consistentes, o Juiz é timido demais e na qual os nossos maiores oponentes contam com um indecente empurrão dos seus governos patrocinadores. Em outras palavras, ela é a modalidade do jogo sujo, desleal, do vale tudo… Três partidas se anunciam num futuro próximo.

A primeira será a retomada das negociações multilaterais na Organização Mundial do Comércio (OMC), pouco mais de um ano depois do impasse de Seattle. Já circulam novas propostas sobre o tema, com os principais exportadores agrícolas do Hemisfério Sul pedindo avanços na liberalização, apoiados pelos Estados Unidos, “pero no mucho”, já que neste país predomina o “faça o que eu digo, não faça o que faço”. No campo oposto, União Européia e Japão lideram um grupo de países ricos que deseja manter os subsídios ao setor. Curiosamente, o protecionismo destes países é veladamente apoiado pelos países mais pobres do mundo, dependentes que são dos enormes excedentes alimentares do mundo rico e do livre acesso para as suas exportações de umas poucas commodities tropicais. Trata-se de um velho filme chamado “a hipocrisia da eterna dependência alimentar”, no qual as nações mais pobres do mundo, em vez de “aprenderem a pescar”, dependem da eterna entrega do “peixe” (leia-se, dos grãos, carnes e laticínios). Portanto, na futura partida da OMC apenas pouco mais de uma dezena de países desejam, de fato, alguma liberalização do comércio agrícola.

A segunda partida será a Área de Livre Comércio das Américas. Tudo indica que a chegada de Bush à Casa Branca dá um novo impulso neste jogo. Se o legislativo americano de fato apoiar a ALCA com o fast-track, algo que ainda não está claro, os EUA só encontrarão duas resistências nos 34 países que pretendem constituir o bloco. Uma é o México, que evita o tema porque joga uma partida fechada a três no gramado do NAFTA logo ao lado. A outra é o Brasil, seja porque tem setores econômicos que podem perder com a integração, seja porque espera antes um avanço das relações comerciais ao Sul do continente, seja porque insiste em regras do tipo daquela que diz que o jogo “só começa quando estiver tudo combinado”, tecnicamente chamada de single undertaking. Já os EUA, que se consideram os “donos da bola”, farão de tudo para começar o jogo tão logo a sua lista de interesses estiver acertada, deixando as listas dos demais países para o dia do juízo final.

A terceira é a partida do Acordo Mercosul-União Européia, que deverá continuar em “câmara lenta” até que a OMC e/ou a ALCA avancem mais rapidamente, já que a prioridade da UE é a futura, e ainda confusa, integração com seus dez vizinhos do Leste. Porém, se por qualquer motivo esta partida avançar, novamente encontraremos toda sorte de resistências para um “jogo limpo” no campo da agricultura. Um lance curioso desta partida, que merece toda a atenção de nossa parte, é o fato da doença da vaca louca, que é uma criação britânico-européia, estar produzindo uma crise de tal monta naquele continente, que já se fala em uma profunda reforma da Política Agrícola Comum (PAC), no sentido de favorecer maior qualidade dos produtos e respeito ao meio ambiente, em lugar do tradicional apoio à quantidade produzida. O primeiro sinal nesta direção foi a recente nomeação do “Partido Verde” para o comando do Ministério da Agricultura na Alemanha. A Inglaterra também vem pregando reformas profundas na PAC. Se algo semelhante ocorrer na França, certamente assisteremos ao Au Revoir les enfants dos lobbies agrícolas tradicionais. Usando os termos adequados da língua inglesa, trata-se do food safety substituindo o food security. Para o Brasil, este novo “modelo europeu” de política agrícola teria impactos tanto positivos (por exemplo, menos excedentes com a redução dos subsídios tradicionais) como negativos (por exemplo, crescimento das barreiras não-tarifárias ao comércio). A conferir.

Enfim, a indignação nacional com a atitude do Canadá deveria agora ser canalizada para um “trabalho de base” consistente na preparação das próximas partidas. Recordo-me que nas vésperas da reunião de Seattle no final de 1999, dezenas de políticos, empresários e jornalistas com quem conversei tinham idéias equivocadas sobre o que seria acertado naquela reunião, e mesmo sobre o que é e como funciona a OMC. É isto que eu chamarei aqui de “comportamento de vaca louca”, seguramente a única doença deste tipo presente no País. “Comportamento de vaca louca” é uma analogia para caracterizar a descoordenação entre órgãos do governo que tratam dos mesmos temas no comércio internacional, para o despreparo estrutural do empresariado em lidar com temas de médio e longo prazo, para o descaso da burocracia no preenchimento de documentos relevantes, para o freqüente descompasso entre governo e setor privado na preparação do posicionamento do País, para a ausência de estudos acadêmicos aprofundados sobre as nossas melhores estratégias e trade-offs. Em suma, é uma analogia para a descoordenação, o imediatismo e a improvisação.

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Marcos Sawaya Jank é Professor da Universidade de São Paulo (ESALQ-PENSA) e Pesquisador Visitante na Georgetown University e no Center for Strategic and International Studies (CSIS) em Washington D.C. (email: msj7@georgetown.edu)

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