Foi realizado nos dias 20 e 21 de Março próximo passado um Fórum de discussão sobre a BSE ou mais comumente chamada de “doença da vaca louca” no Centro Nacional de Pesquisa de Gado de Leite da Embrapa em Juiz de Fora, MG. Com a presença do Exmo. Sr. Ministro da Agricultura e do Abastecimento Dr. Marcus Vinicius Pratini de Moraes, e demais representantes do Ministério, da EMBRAPA, das Universidades e outros Centros de Pesquisa, teve como objetivo, discutir o estado da arte dos estudos sobre a doença no Brasil e no exterior e propor medidas de política para a prevenção e controle. Nesse sentido foi apresentado pela pesquisadora Dra. Terezinha Padilha do LABEX – EMBRAPA, uma palestra sobre a BSE, e que transcrevemos a seguir:
ENCEFALOPATIA ESPONGIFORME DOS BOVINOS: A DOENÇA DA VACA LOUCA
Por Terezinha Padilha1
A ocorrência de enfermidades nos rebanhos causa impactos negativos na produtidade e na renda dos sistemas de produção. Este impacto, tradicionalmente associado ao decréscimo de produção apresentado pelo animal com a forma clínica ou subclínicia da doença, possui atualmente novas dimensões. Com a globalização dos mercados e as exigências sanitárias para comercialização dos produtos de origem animal, a manutenção da saúde dos rebanhos se tornou estratégica para a garantia da competitividade.
A importância para a saúde pública – e para a saúde animal – da ocorrência de doenças e a facilidade de dispersão foi exemplificada recentemente quando a Food and Agriculture Organization (FAO) anunciou que os rebanhos bovinos de mais de cem países apresentam riscos de desenvolverem a Encefalopatia Espongiforme dos Bovinos (EEB), também conhecida como Doença ou Mal da Vaca Louca (DVL). Ao fazer o pronunciamento, a FAO alertava sobre a necessidade do estabelecimento de medidas, visando a rápida detecção, o seu controle e erradicação em áreas livres.
Os primeiros animais acometidos pelo Mal da Vaca Louca foram identificados na Inglaterra no final de 1985/1986. Desde então, a doença tornou-se uma epidemia e acometeu cerca de 180 000 bovinos no Reino Unido. Até fevereiro de 2001, mais de 35 mil fazendas – cerca de 40% dos rebanhos bovinos do Reino Unido – tiveram animais enfermos com a doença, sendo a maioria em rebanhos de leite (61,3%).
Inicialmente, a EEB disseminou-se na Europa. Primeiro, ela se manifestou em animais importados do Reino Unido. Portugal foi o primeiro país a apresentar bovinos infectados (1990), seguido da Dinamarca (1992), Alemanha (1992) e Itália (1994). Em animais nativos, a doença ocorreu inicialmente na Suíça (1990) e em seguida na França (1991), Portugal (1994), Luxemburgo, Holanda (1997), Bélgica, Liechtenstein (1998), Alemanha, Espanha (2000), Dinamarca e Itália (2001). Fora do território europeu a doença foi diagnosticada nas Ilhas Malvinas (1989), Oman (1989) e Canadá (1993), onde ela ocorreu apenas em animais importados do Reino Unido.
A EEB é uma doença complexa, apresentando algumas características incomuns. Por exemplo, a causa exata da doença não foi ainda elucidada completamente, apesar de já existirem várias hipóteses sobre o seu agente causal. Dentre elas, existem fortes evidências que a doença seja ocasionada por um agente etiológico atípico, as partículas protéicas infecciosas denominadas prion (Pr). As prions são formas modificadas de uma proteína normal (PN) presente nas células. Elas possuem forma e conformação alteradas, o que confere resistência parcial à degradação enzimática, ao calor e aos agentes sanitizantes e esterilizantes comuns. Acredita-se que elas sejam catalíticas e autopropagadoras. Isto é, uma molécula de Pr modifica uma de PN que adquire a capacidade de modificar outra PN, gerando um processo de conversão em cadeia. Como as Pr são pouco solúveis e parcialmente resistentes à degradação pelas enzimas celulares, elas se precipitam formando depósitos em forma de placas, ocasionando mortalidade das células nervosas e a aparência esponjosa do tecido nervoso. Este processo causa a degeneração lenta do sistema nervoso do animal que geralmente apresenta os primeiros sinais clínicos entre 2-8 anos após a infecção.
Os sinais clínicos são aqueles associados às doenças neurológicas: alteração do comportamento (nervosismo, agressividade, pânico, salivação, tremores, etc), incoordenação, marcha irregular (passada mais alta com os posteriores), hipersensibilidade ao toque e som, entre outros. Os animais perdem peso e aqueles em lactação diminuem a produção de leite. Após o surgimento dos sintomas, o curso da doença varia de 2 semanas a 14 meses e culminando com a morte do animal, já que não existe tratamento. Geralmente a doença acomete poucos animais no rebanho e não existe ainda nenhum método de diagnóstico disponível para identificação dos animais portadores. A confirmação da suspeita é feita após a morte do animal, por meio de exames histopatológicos de amostras do cerébro.
Com o incremento do número de casos da doença no Reino Unido, ela foi considerada de notificação obrigatória (Junho de 1988). Os estudos que se seguiram permitiram identificar rapidamente que ela tinha uma fonte comum de contágio, possivelmente associada à ingestão de farinha de carne e osso (FCO). A farinha de carne e osso, originada da reciclagem de carcaças de ruminantes, era usada como suplementação protéica na maioria das fazendas que possuíam animais doentes.
Com o propósito de prevenir a disseminação da doença, em Julho de 1988 o Reino Unido proibiu o uso de FCO na alimentação de ruminantes. E, com o aumento do conhecimento sobre a doença, foi proibida também a industrialização de cérebro, medula espinal, timo, amígdalas, baço e intestino de bovinos com mais de seis meses de idade, para alimentação de ruminantes (Setembro, 1990). Com isso, o número de casos de EEB – que teve cerca de 37000 casos em 1992 – decresceu para 1337 confirmados no ano 2000. Apesar do sucesso dessas medidas, a epidemia ainda não cessou completamente: somente nos dois primeiros meses deste ano 36 novos casos foram diagnosticados.
Estudos conduzidos na Inglaterra indicam que a EEB não é transmitida por meio do contato entre bovinos ou entre bovinos e outras espécies. É possível que a transmissão maternal ocorra num percentual pequeno de casos, mas essa forma de transmissão ainda não foi completamente estabelecida.
Esperava-se que a doença não fosse ocorrer em animais nascidos após Julho de 1988. Teoricamente os animais nascidos após esta data não teriam acesso à principal fonte de infecção, ou seja, a ingestão de FCO. Contudo, a continuação do uso de alguns estoques existentes e a contaminação nos moinhos – a FCO podia ser usada para o preparo de alimentos destinados a suínos e aves – permitiu o aparecimento da doença nesses animais. A dose requerida para infecção é muito pequena – menos de um grama – explicando a possibilidade de contaminação cruzada nos moinhos.
A EEB pode ser transmitida experimentalmente a outros animais. Camundongos, ovinos, mustelídeos e suínos desenvolveram a doença após a inoculação intracerebral ou após administração oral de homogeinados de cérebros de bovinos contaminados. A doença também ocorreu de forma natural em gatos domésticos e em ungulados exóticos e felinos selvagens mantidos em zoológicos. Nestes casos, a FCO foi implicada como o veículo do agente causal.
A EEB pertence a um grupo de doenças transmissíveis, que acometem outras espécies animais e o homem. Dentre as que acometem os animais incluem-se o Scrapie em ovinos, a Encefalopatia Transmissível das Martas, a Encefalopatia Espongiforme dos Felinos e a Doença Crônica Debilitante dos Cervos, Alces e Mulas. Em humanos foram relatadas o Kuru, a Doença de Creutzfeldt-Jakob (CJD), a Síndrome de Gerstmann-Straüsser- Sheinker e a Insônia Fatal Familiar. Essas doenças, de ocorrência rara, são de evolução lenta e se caracterizam pelo aparecimento de sintomas neurológicos graves e fatais. No ser humano a doença mais comum é a CJD que ocorre na taxa de um caso para cada 1 milhão de pessoas.
Uma variante da CJD, a vCJD, foi diagnosticada em população humana no Reino Unido. Contrastando com a CJD, a vCJD acomete pessoas jovens, com idade média de 28 anos, e tem duração mais longa – 7 a 38 meses -, enquanto a CJD dura cerca de seis meses. Dados recentes publicados no Reino Unido, em 02 de fevereiro de 2001, relatam 94 pessoas vitimadas pela vCJD, desde o seu aparecimento em 1995. O número de casos de vCJD em relação a CJD tem aumentado. Em 1995, esses casos representavam 1:15 e no ano 2000, 1:1,5. Registros de pessoas vitimadas pela vCJD foram relatados na França (três casos) e Irlanda (1 caso).
Existem fortes evidências experimentais e epidemiológicas indicando haver uma associação entre a EEB e a vCJD, o que torna a EEB uma doença zoonótica de grande importância para a saúde pública. Acredita-se que a rota de infecção na população humana tenha sido a ingestão de alimentos contaminados antes da introdução das medidas que proibiram o uso de aparas de carne para o preparo de derivados. As aparas de carne são recolhidas mecanicamente de regiões próximas a coluna vertebral dos animais e possivelmente tenham sido contaminadas pela medula espinal ou gânglios nervosos.
Ao chamar a atenção dos países sobre a EEB, a FAO apoiava-se no fato de que no período de 1986 a 1996, a FCO foi exportada para mais de 100 países (membros e não membros da União Européia). Por sua vez, igual número de países também importou animais vivos. Como medidas de precaução, a FAO recomendou a proibição da alimentação de ruminantes com FCO e, dentro do possível, a proibição do seu uso para qualquer espécie animal, bem como o estabelecimento de medidas de vigilância e defesa que permitam a detecção, o controle e erradicação rápida da doença, a não-utilização de vísceras de ruminantes consideradas de alto risco nas cadeias de alimentação humana e animal e a proibição da inclusão de animais que morrem ou adoecem na cadeia de alimentação animal. A FAO recomendou ainda o fortalecimento da capacitação dos países na análise e gerenciamento de riscos, e na comunicação de aspectos relacionados à proteção de alimentos ao público em geral.
É díficil isolar os efeitos da EEB na economia. A doença afeta todos os elos da cadeia de produção, dificultando estimativas setoriais. No Reino Unido, as perdas totais acumuladas foram avaliadas em mais de 5 bilhões de dólares até o ano 2001. Grande parte dessas perdas deve-se à dificuldade de erradicação e à ameaça constante que essa doença representa para a saúde animal e humana.
A epidemia de EEB está contribuindo para alterar o hábito alimentar europeu e impulsionado modificações nas práticas de produção. Ela determinou retração no consumo de carne bovina e a busca por sucedâneos (alimentos substituidores). A reconquista desse mercado requer a garantia da ausência de contaminação pela EEB. A rastreabilidade dos processos de produção e os programas de qualidade estão sendo envisionados como uma alternativa para que haja garantia dos processos de produção e a conseqüente segurança no consumo.
1 Médica veterinária, PhD, pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, sediada no Laboratório da Embrapa no Exterior – LABEX nos Estados Unidos. E-mail: tpadilha@anri.barc.usda.gov.
Adaptado de manuscrito preparado para publicação na revista Safra de Agronegócios.