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Gestão política e gestão técnica na era da globalização

Prof. Dr. Luiz Francisco Prata

Ainda o já velho novo caso da “vaca louca” e a não “menos” atitude do Canadá como ponto de partida para uma análise convencional nos fundamentos, mas de difícil consenso no “modus” brasileiro.

Assistiu-se, nos últimos dias, a uma profusão de declarações na mídia, a imensa maioria de cunho econômico e político, complementadas com algumas pinceladas de informações técnicas apenas a título de justificar ou esclarecer aquelas. A opinião pública foi exposta às mais variadas manifestações, muitas delas de gosto duvidoso que, se não contribuíram para uma melhor educação e conhecimento a respeito do problema, ao menos serviram para uma mobilização de “torcida” frente a um adversário todo-poderoso.

Viu-se, desde uma confraria de donos de restaurantes jogando bebidas e pato canadense no lixo, até aos arroubos de uma “tresloucada” novilha em frente à embaixada do Canadá, numa cena grotesca de colocar um animal jovem, não habituado ao contato com pessoas, sobre um piso escorregadio e rodeada de uma pequena multidão insensata. Reação natural e instintiva da acuada novilha, seguiram-se cenas de investidas, escorregões e quedas que muito lembraram os sinais clínicos comportamentais expressados por animais acometidos pela BSE. Além de inúmeros outros adjetivos impróprios, um deles, expresso no pronunciamento de importante representante dos pecuaristas nacionais, veio a calhar, denotando bem o espírito vigente, embora não fosse essa sua intenção ao referir-se à doença como “febre” da vaca louca.

O assédio da imprensa, na quase totalidade e colocada como premissa, foi também de uma busca “febril” pelo novo. Sensatez, prudência e informações técnico-científicas foram sistematicamente preteridas em razão do clima vigente, a não ser pela utilização de algumas poucas frases soltas, pinçadas de pronunciamentos inteiros nos quais tinham sentido concreto. Até o presidente da república posicionou-se incisivamente quanto às estratégias de “guerra e paz”, embora respondesse laconicamente ao repórter com um – E dai? – quando questionado sobre a possibilidade da equipe técnica brasileira não ter respondido em tempo hábil às solicitações de um nosso parceiro comercial.

Essa onda à parte, urge repensar toda uma estrutura, posição e atitudes brasileiras. O governo atual é dos mais ativos representantes da quebra de barreiras, da desnacionalização, da abertura de fronteiras e da globalização. De outras épocas, quando ainda na graduação, lembro-me dos dizeres do então ministro das Minas e Energia, Dr. Shigueaki Ueki, durante uma aula inaugural: “Toda e qualquer economia emergente deve estar permanentemente atenta às atitudes dos países desenvolvidos pois, ao menor sinal ou tentativa de expor a “cabeça”, sistematicamente levarão “pauladas” no intuito de mantê-la `submersa ´.” É óbvio que tal afirmação não lhe era própria, bastando apenas algum conhecimento histórico da humanidade. A repetição é que sempre se faz necessária para a solidificação do aprendizado. Com isso desejo enfatizar seu pleno conhecimento por toda a estrutura de um governo de intenções e ações liberais.

Por outro lado, nenhuma ação política ou de governo sustenta-se, com alguma perenidade ou reflexos concretos de longo prazo, apenas pela vontade política. A ação política, além da intenção, pressupõe toda uma análise conjuntural e assessoria técnica competente, daí a necessidade da existência de Ministros e suas pastas, além de corpo técnico próprio e de várias instituições nacionais, cuja finalidade seria a de embasar, sustentar e mesmo executar determinadas ações políticas.

Isso posto, e para deixar bem claro que este ponto de vista é movido pela responsabilidade e oportunidade, e não pelo oportunismo do momento, permito-me transcrever aqui parte do conteúdo de apontamentos didáticos escritos em 1995 e publicados em 1996, logo após todo o primeiro “boom” que abalou a opinião pública mundial em função da doença na Grã-Bretanha e União Européia:

” O problema aventado (BSE – Doença da vaca louca) ainda não acabou, muito pelo contrário, demandando inúmeras providências governamentais, econômicas e sanitárias em todos os países do mundo. O aproveitamento, e a tecnologia envolvida nesse aproveitamento, de produtos e subprodutos de origem animal passaram por criteriosa revisão, seja de processos ou de princípios, buscando, à luz do conhecimento científico, a inocuidade de seu consumo, seja pela espécie humana ou outras espécies animais. Já não era sem tempo.

A ciência e o processo científico baseiam-se fundamentalmente nos critérios da comprovação, repetibilidade, reprodutibilidade, envolvendo, sempre, a formação ética do caráter humano. Atualmente o homem é dependente dos conhecimentos gerados pela ciência. Via de regra esse conhecimento é colocado à sua disposição através de novas tecnologias que visam ao aprimoramento de sua saúde, bem estar e qualidade de vida.

Todavia, nesses últimos 50 anos, esse mesmo conhecimento serviu para alimentar a ganância inescrupulosa de pessoas e grupos econômicos que, munidos de falsa ética e de pseudo-ciência, impuseram regras jamais vistas, ao menos com tamanha abrangência, fazendo daquela citação bíblica inicial — “Não comereis animal morto. Ao estrangeiro o darás ou o venderás, porquanto és santo ao senhor teu Deus“— uma máxima a ser seguida.

Desde a antigüidade, simplificada por importante filósofo, sabe-se que ao processo ético corresponde a fazer-se um pouco mais do que se deve e um pouco menos do que se pode. Esse é o bom senso pelo qual os seres humanos deveriam guiar-se em quaisquer dos campos do conhecimento e das relações humanas.”

Ainda, em julho de 2.000, em artigo técnico publicado na revista Higiene Alimentar (v. 14, n. 74, p. 13-16), voltaria a chamar a atenção das autoridades sobre as novas necessidades incorporadas às cadeias produtivas agropecuárias, cujo intuito é o de oferecer e garantir a “integridade e a segurança” dos alimentos (Safe and wholesome). Muitos dos aspectos ali abordados surgiram ou se tornaram imprescindíveis justamente em decorrência de acontecimentos vivenciados na última década do século XX, mais especificamente: a BSE, a nvCJD, a E. coli O-157-H7, a presença de compostos dioxínicos, a perspectiva dos transgênicos, a Listeriose, entre outros.

Tais acontecimentos, além dos reflexos econômicos, políticos e sociais, sacudiram a comunidade científica mundial. Como resposta, e das necessidades permanentes da economia e comércio mundial, surgiu uma nova tendência e filosofia para os controles a serem implementados e executados, agora como obrigação mínima com o intuito de conferir aquelas garantias. Essa tendência foi rapidamente aprimorada, aceita e incorporada, numa releitura completa dos antigos procedimentos, fazendo com que organismos mundiais como FAO e OMS, OIE, GATT e OMC, fossem seus principais divulgadores internacionais, assessorando a todos os interessados. Fazem parte dessa “nova” estratégia: as técnicas de rastreabilidade, o reconhecimento de perigos, a análise de perigos, a análise de riscos (inerentes a cada perigo), o gerenciamento do risco, a comunicação do risco, o controle dos pontos críticos, a adoção de Boas Práticas de Produção, Obtenção, Manipulação e Fabricação e a adoção de planos e programas de higiene operacional, além das tradicionais práticas de inspeção, controles e de vigilância sanitária.

Dessa simples relação de novas tarefas incorporadas depreende-se: 1. Que são exigências mínimas, mútuas e comuns às relações comerciais que pretendam ser internacionais; 2. Que demandam custos na implementação e execução, onerando o sistema produtivo mas que, definitivamente, são custos a serem incorporados e que passam a fazer parte do valor do produto; e 3. Que necessitam de pessoal qualificado em todos os níveis do sistema produtivo.

Repassar a idéia de que o Brasil, por suas condições naturalmente privilegiadas de extensão territorial, de clima, possuidor do maior efetivo bovino para a produção natural de carnes de qualidade, dotado de invejável parque industrial com excelência em tecnologia de obtenção e transformação, complementada por um corpo de Inspetores Sanitários que nada deixa a desejar quando comparado aos dos países mais desenvolvidos, por si só, é insuficiente face às novas exigências anteriormente citadas e mesmo para garantir a solidez de mercados externos já conquistados ou que se pretenda conquistar. De modo análogo, é ilusão pensar que a ocupação de novos mercados, embasada pura e simplesmente na produção natural de carnes do chamado “boi verde”, ocorrerá naturalmente quando da ocorrência de lacunas como a provocada pela crise da vaca louca em toda a Europa. Aquelas características constituem verdadeiros privilégios a ser competentemente explorados, enquanto que as lacunas que surgiram e que surgirão constituem oportunidades reais a quem melhor preparado se mostrar quando for o momento, mas jamais um oportunismo do qual pretenda-se tirar vantagens.

Voltando à questão original, e “bombardeios” à parte, verifica-se que a atitude do Canadá foi intempestiva, inusitada e extremamente prejudicial à imagem e aos interesses brasileiros, não encontrando semelhança em nenhuma outra relação comercial recente, além de, tecnicamente, desprovida de embasamento. Efetivamente, pode-se concluir então por uma atitude política e deliberada de retaliação, senão vejamos:

1. A alegada falta de documentação poderia até servir de motivo para uma penalização das relações comerciais mas, no máximo, dariam pretexto a uma SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE NOVAS IMPORTAÇÕES (como a atitude solidária a que foram obrigados a tomar os EUA e México), e nunca ao recolhimento de mercadorias já expostas em pontos de venda e mesmo de posse de consumidores;

2. Esse “recall” somente se justificaria face a um perigo real e frente a um risco iminente, ao menos essas são as condições depreendidas de todo o conhecimento científico e adotadas pelos organismos internacionais.

Anunciada a decisão com estardalhaço e cenas do recolhimento de mercadorias dos supermercados, divulgadas para o mundo inteiro, conclui-se que a imagem de produtos naturais de qualidade da carne brasileira foi maculada. Esse tipo de atitude não difere muito, na prática, de sanções sofridas por outros produtos brasileiros competitivos, como o aço, o suco de laranja e os calçados, entre outros. Mais uma vez há que se fazer um enorme esforço de recuperação para emergir novamente a “cabeça”. Esse é o principal motivo pelo qual não se pode concordar com o pronunciamento das autoridades de defesa sanitária animal, afirmando que ” a doença da vaca louca será tratada em nosso meio da mesma maneira que a Febre Aftosa ou qualquer outra enfermidade exótica“.

Tecnicamente há que se discordar dessa posição por vários motivos:

1. O primeiro, e dos mais importantes é que, felizmente ainda não tivemos nenhum caso da doença sendo diagnosticado em nosso território, o mesmo acontecendo para a enfermidade equivalente nos seres humanos (nvCJD); e que temos o dever e a obrigação de manter nosso território livre pelo maior tempo que for possível;

2. Diferentemente da Febre Aftosa, enfermidade preexistente em nosso meio e com a qual somos obrigados a conviver em função da escassez e insuficiência de recursos para sua erradicação, agravada por inúmeras questões epidemiológicas de difícil resolução, que constitui sério problema apenas de sanidade animal, a doença da “vaca louca” promoveu e continua a provocar toda uma comoção na opinião pública pela possibilidade de ser transmitida aos seres humanos e pela gravidade com que os acomete. Em toda a União Européia há estatísticas demonstrando redução de mais de 30% no consumo de carnes vermelhas.
3. Que em função das características naturais privilegiadas aqui existentes e de toda uma cadeia agropecuária competente na produção de carnes e derivados de qualidade, com grau de profissionalização crescente, sempre foi nosso propósito a consolidação de mercados internacionais e a conquista de novos;

4. Que, para tanto, há sempre a necessidade de investimentos e, no caso específico, de um plano especial que possa efetivamente garantir a segurança e a integridade dos alimentos aqui produzidos. Embora pelo conjunto de medidas adotadas possamos ter a tranqüilidade de afirmar a inexistência do problema em nosso território, a forma com que o fizemos difere, em parte, das recomendações e procedimentos adotados pelos organismos internacionais, o que, conseqüentemente, possibilitou uma indevida classificação de risco. E, finalmente,

5. Que a responsabilidade deve ser compartilhada com todos os setores envolvidos, sejam eles públicos e governamentais, cuja competência técnica não apresenta motivos para dela duvidar-se, mas que ao longo das últimas décadas tem sofrido perdas apreciáveis em seu efetivo agravada por um volume crescente de trabalhos, incorporando novas atribuições; mesmo e principalmente das organizações não governamentais e entidades representativas dos vários setores, das quais espera-se uma participação cada vez mais ativa e importante na responsabilidade que lhes cabe na profissionalização da atividade, não só garantindo sua parte na adoção e execução de medidas que garantam a integridade e a segurança dos alimentos produzidos, como também possam tornar-se efetivas na competitividade dos nossos produtos.

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Luiz Francisco Prata é Médico Veterinário, Mestre e Doutor em Tecnologia de Alimentos, Professor Doutor do Depto. de Medicina Veterinária Preventiva e Reprodução Animal, FCAVJ – UNESP

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