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Na crise da “Vaca louca virtual” não deveríamos reagir como cães raivosos

Pedro Eduardo de Felício1

Neste momento grave em que o setor da carne está abalado pelas notícias da classificação GBR (“geographical BSE risk”) II – risco improvável, porém não excluído – da União Européia, e pelo bloqueio das exportações para a América do Norte, iniciado por uma decisão prepotente do governo canadense, parece oportuno esclarecer alguns pontos fundamentais para a compreensão do problema.

Primeiro:

A BSE, conhecida como doença da “vaca louca”, representa não somente prejuízos econômicos para qualquer país que venha registrar sua ocorrência, mas, principalmente, o risco de uma moléstia fatal em seres humanos, caracterizada pela perda de capacidade motora, demência e óbito, denominada doença de Creutzfeldt e Jakob (CJD). Esse risco para a saúde humana geralmente escapa das análises precipitadas e das declarações raivosas dos líderes do setor.

Compreende-se que eles se sintam ameaçados por medidas externas de impacto e imaginam que estão diante de inimigos terríveis que querem lhes tirar a perspectiva de lucros com as exportações. Não lhes ocorre, porém, aproveitar a oportunidade – lamentável é bom que se diga – para tirar lições da crise, fazendo uma crítica da estrutura e funcionalidade do sistema brasileiro de garantia de qualidade dos alimentos. Como os interesses econômicos falam mais alto, cria-se uma versão oficial dos fatos e declara-se guerra ao suposto inimigo, quando na verdade o inimigo real está aqui mesmo, na nossa incapacidade para lidar com situações complexas como essa.

Segundo:

O agente etiológico da BSE é inédito e de difícil compreensão até mesmo para os cientistas, que dirá, então, para ministros e assessores burocráticos. Talvez por isso mesmo, na Europa, alguns deles tiveram que renunciar a seus cargos e muitos estão sendo processados na justiça por negligência.

Não se trata de uma bactéria ou vírus, ou de qualquer outro microrganismo vivo. Tudo indica tratar-se de uma inocente molécula de proteína do sistema nervoso central dos animais – codificada por um par de alelos já mapeado – que sofre uma alteração na sua estrutura terciária, aglomera-se formando placas, e torna-se capaz de modificar a conformação de outras de igual estrutura.

Para essas partículas protéicas infectantes, em 1982, o Dr. Stanley Prusiner, da Universidade da Califórnia, que as descobriu a partir da doença “scrapie” das ovelhas, cunhou o nome “prion” (“pree on”). O prion seria o agente da “scrapie”, da BSE das vacas, e de outras encefalopatias espongiformes transmissíveis em diversas espécies, inclusive a “insônia congênita”, o “kuru” e a nova variante CJD em humanos.

O prion é resistente aos sanitizantes comuns e à esterilização pelo calor. Diferentemente dos vírus, o prion não provoca reação de defesa inicial, tampouco a formação de anticorpos no organismo recém infectado, não existindo chance de se desenvolver vacina contra ele.

Ninguém pode assegurar que os rebanhos estão livres da BSE só porque não há registro de ocorrências da moléstia num dado país. Como não existe um método diagnóstico da enfermidade em animais vivos, nunca se sabe se eles foram infectados ou não até que apareçam os primeiros sinais clínicos.

A doença pode estar sendo incubada, por dois ou mais anos, como se estivesse preparando uma escaramuça para aqueles que se negam a lutar contra ela com a frieza da racionalidade. Fez isto na Suíça, Portugal, França, Espanha, Alemanha e, finalmente, na Itália, por que não faria no Brasil, que importou gado vivo desses países – mais de 4 mil cabeças – em anos críticos em que a doença já se manifestava, como ocorreu com as importações do Reino Unido e da França. Também veio muito gado da Alemanha, onde a BSE já estava incubada na ocasião.

Note-se que nas estimativas de GBR da União Européia, as duas faltas mais graves são as importações de animais e de farinha de carne e osso para ração. Felizmente não importamos a farinha, mas caímos na tentação de importar animais. E caímos tolamente, porque o fizemos com base numa justificativa no mínimo discutível, a de que o País precisava material genético europeu para aumentar a produtividade dos rebanhos de gado zebu.

Terceiro ponto:

Por último, um destaque para as fraquezas habituais dos sistemas de vigilância e inspeção sanitária de fora da alçada federal. Por certo, os burocratas, empresários e pecuaristas vão ficar esperando que uma vaca “deprimida e assustada” (prefiro esta expressão à de “vaca louca”) caia a seus pés, para só então tomarem as providências que deveriam ser preventivas, de vigilância ativa (fazendo amostragem de animais velhos), e não apenas de vigilância passiva, em que se analisam cérebros de animais suspeitos à procura de lesões.

Se vier a ocorrer um caso de BSE, tomarão providências em meio à costumeira confusão e disputas, para saber se devem ser da competência federal, estadual ou municipal. Que isto jamais aconteça, mas se por desgraça acontecer, o que dirão ao povo, que vai ficar pensando que foi enganado enquanto consumia derivados de carne contaminados com tecido nervoso central de procedência obscura, provavelmente não inspecionada, já que de 30 a 70% do gado abatido, conforme a região, não passa por inspeção sanitária digna desse nome.

Diante de tudo isso, não seria o caso de agradecer aos canadenses que, apesar dos prejuízos causados à economia nacional, estão provocando o debate interno de uma questão que dificilmente seria discutida aqui, não fosse pelo embargo das exportações?

É claro que isto é um exagero, os canadenses administraram o remédio errado, na hora imprópria, e em dose cavalar. Deram o drible da vaca no nosso zagueiro, pegaram nosso goleiro distraído e marcaram um gol do meio da cancha, que precisa ser anulado porque o árbitro não havia entrado em campo.

Entretanto, você leitor, que a essas alturas deve estar furioso com o time de caciques sem índios que representam o País nas questões sanitárias e de segurança alimentar, imagine-se apenas por um instante na condição de primeiro ministro ou presidente de um país que importa alimentos processados, derivados de carne. Imagine, agora, que você não tem os relatórios técnicos – que não foram fornecidos a contento e dentro do prazo pelo país exportador – necessários para oferecer garantias de saúde para o seu povo.

O que você faria? Correria o risco de futuramente ser processado judicialmente por negligência? Ou criaria a figura da “vaca louca virtual”, uma imagem polêmica, porém de grande impacto? Não aproveitaria você a oportunidade de mostrar ao resto do mundo como você é durão quando trata de defender a saúde do seu povo e de seus rebanhos, para, quem sabe, melhorar a cotação de seus produtos no mercado internacional?

Agora não adianta esbravejar. Só nos resta levantar, sacudir a poeira, pensar as feridas, arrumar a casa e começar tudo de novo, porém, com humildade, pedindo desculpas aos empresários do setor, e dando explicações ao consumidor interno, que começa a achar que o Ministério ignora sua existência.

Com as minhas desculpas ao prezado leitor por colocar a situação dessa maneira um tanto diferente do estilo acadêmico usual, mas certas coisas só mudam quando mudamos a maneira de vê-las, ou como se diz modernamente, é preciso mudar certos paradigmas que serviram bem em outras épocas, mas já não servem agora. Quem não entender isto está fadado a viver no passado.
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1 é médico veterinário, MS. em genética animal, Ph.D em produtos de origem animal e professor adjunto da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp.

* Críticas, construtivas ou não, devem ser enviadas através do formulário de cartas do leitor.

0 Comments

  1. José Luiz Nelson Costaguta disse:

    Excelente artigo. Muito obrigado.

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