Expedito Aguiar Lopes e João Avelar Magalhães
Introdução
No Brasil, de acordo com o último censo agropecuário, existem cerca de 100 milhões de hectares de terras ocupadas com pastagens plantadas, distribuídas pelas regiões Centro Oeste, Sudeste, Norte, Nordeste e Sul, respectivamente, em 45,3; 20,5; 14,8; 12,1 e 7,1 milhões de hectares. Segundo estimativa da Embrapa, 50% dessas pastagens estão em processo de degradação.
Vários fatores são mencionados como predisponentes e/ou condicionantes da degradação das pastagens plantadas. Dentre eles, são citados na literatura especializada o clima, o tipo de solo, a inadequação do germoplasma forrageiro, o estabelecimento incorreto da forrageira, a adubação desbalanceada, a presença crescente de plantas invasoras, a incidência de doenças e o manejo animal inadequado.
À parte desses fatores e sem intenção nenhuma de querer negar a importância deles na constituição do problema, há um aspecto fundamental, subjacente a tudo isso que atua como elemento amalgamador desse processo de degradação. Trata-se da filosofia prevalecente que embasa a finalidade da exploração desse recurso forrageiro no Brasil, manifestada principalmente nos enfoques que são dados ao seu manejo e nas técnicas utilizadas para obtenção dos resultados.
No caso da pastagem plantada, a sua formação e manejo visam manter uma espécie exótica dominante no ecossistema como monocultura de pasto, empregando um arsenal de técnicas agronômicas baseadas no conhecimento da auto-ecologia da espécie/cultivar introduzida. Essa estratégia é válida e funciona bem para as chamadas “tame pastures” utilizadas na produção de feno, silagem ou até mesmo sob a forma de pastejo sazonal em áreas não muito grandes. Extrapolar, todavia, a aplicação dessa estratégia em sua plenitude para extensas áreas de pastagens (centenas de milhares ou de milhões de hectares contíguos) é questionável pelo menos em termos de operacionalidade e certeza de retorno financeiro duradouro.
Compreensão ecológica do problema
Desde que não haja grande perda de solo e na ausência de distúrbios, a natureza atua sempre no sentido de restaurar o tipo de vegetação originária de qualquer área. É um equívoco, portanto, julgar que, removendo-se totalmente a cobertura vegetal nativa de uma área e substituindo-a por uma comunidade simplificada de plantas exóticas (geralmente, uma única espécie forrageira), mesmo com um aporte intensivo de insumos, remove-se, automaticamente, também, todos os problemas inerentes ao comportamento ecológico da vegetação natural outrora existente naquele meio ambiente.
Todavia, a coisa não é assim tão simples como parece para muita gente. Mesmo tornando-se vegetação-clímax quando do seu estabelecimento, a comunidade de forrageiras exóticas é levada, sob pastejo, a um tipo de “disclímax temporário”. Nessa nova situação, ela vai fazer parte do jogo da natureza local ou regional, ou seja, os seus componentes vão competir por espaço, nutrientes, luz e umidade, etc. com uma variedade de espécies colonizadoras autóctones e dotadas de mecanismos capazes de alterar um ou mais desses fatores ambientais.
Uma vez nesse jogo, as espécies vegetais substituem umas às outras porque, em cada estágio, as espécies precedentes modificam o ambiente tornando-o menos adequado para elas próprias e mais favoráveis para outros indivíduos. Com isso, é acelerado o processo de mudança na composição botânica da pastagem, abrindo caminho para a sua degradação. Os ecologistas, no entanto, chamam esse processo de lei natural de sucessão vegetal.
Portanto, é imprescindível, também, no caso da formação e manejo de grandes áreas de pastagens plantadas, uma compreensão detalhada da dinâmica da vegetação dessas áreas para que a instabilidade desses sistemas de pastagem seja mantida no nível mínimo desejável, garantindo assim uma produtividade elevada e persistente de pasto de boa qualidade ao longo do tempo.
Visão holística de ecossistema
1 – Da comunidade vegetal
As pastagens em excelentes condições apresentam maior produtividade de forragem. O ideal, então, seria mantê-las nessa situação. Contudo, em muitos casos, é quase impossível do ponto de vista prático, principalmente quando se trata de áreas muito extensas, manejá-las tendo em vista a sua manutenção duradoura nessa condição de excelência.
Na situação atual das pastagens plantadas nas regiões Central, Meio-Norte e Pré-Amazônica do Brasil, o foco do manejo não deveria ser centrado apenas para mantê-las necessariamente como uma monocultura de pasto em excelentes condições. Ele deveria também se voltar para determinar ou identificar o estádio seral da vegetação, constituído por uma associação de plantas forrageiras ecologicamente compatíveis, que apresente a máxima estabilidade do sistema de pastagem (forrageiras exóticas dominantes + forrageiras nativas co-dominantes), conjugada com níveis economicamente eficientes de conversão de energia das plantas em produto animal por unidade de área (carne, leite, etc.).
Essas forrageiras (e não uma forrageira) seriam consideradas as espécies-chave da comunidade, tornando-se, portanto, a unidade de manejo em função da qual deveria ser estabelecida toda a estratégia de uso da pastagem com ênfase na aplicação dos conhecimentos da sua fitossociologia (sinecologia) e não no domínio da auto-ecologia dos seus componentes, isoladamente.
O passo mais importante nessa direção é a saída da monocultura da forrageira. É diversificar o pasto, promovendo, entre outras coisas, uma distribuição temporal mais uniforme dos nutrientes. Extensas áreas de pastagens plantadas não deveriam ser formadas por uma única espécie botânica forrageira. Parece existir, de forma consciente ou inconsciente na maioria das pessoas ligadas à produção animal, um desejo de busca por uma gramínea autocontida em todos os aspectos. Uma espécie/cultivar forrageira que agregue em si própria a maior capacidade de produção de forragem, o mais amplo espectro de adaptação ecológica, elevada capacidade de competição com outros indivíduos, resistente às pragas e doenças, boa aceitabilidade e nutricionalmente adequada à maioria dos animais pastejadores. Além disso, e mais importante, capaz de substituir de forma dominante e perpetuada a vegetação-clímax removida. Enfim, um “supercapim”.
Pelo avanço da ciência, notadamente a engenharia genética, não é totalmente absurdo se admitir, pelo menos em teoria, a factibilidade da obtenção de um indivíduo com as características acima mencionadas. Se não agora, certamente num futuro não muito distante.
Independentemente de qualquer condicionalidade, essa idéia e a sua virtual materialização como fonte exclusiva de forragem, deveriam ser eliminadas de vez, por algumas razões.
Primeiramente, porque isso reduziria a maior vantagem (e talvez a única) das áreas tropicais em relação às temperadas em termos de produção animal, que é a sua maior biodiversidade.
Embora quantitativamente mais elevada, a fitomassa pastável constituída por uma única forrageira é uma dieta monótona que favorece, em geral, apenas um tipo de animal, o que, circunstancialmente, pode ser mais vantajoso. No entanto, a conseqüência disso é um ecossistema de pastagem extremamente instável, cuja sustentabilidade é mantida a um custo economicamente muito elevado, podendo reduzir, com o passar do tempo (o que parece já estar em curso), a capacidade competitiva da produção animal naquela área.
Em segundo lugar, há o risco, embora também em teoria, de uma superespécie ou uma supercultivar forrageira com aqueles atributos se tornar, no futuro, por alguma razão, um planta-problema, ambientalmente indesejável.
“A Austrália, signatária da Convenção Internacional para a Diversidade Biológica, por ocasião da ECO-92, no Rio de Janeiro, está implementando um programa nacional estratégico de controle de plantas daninhas. Esse programa adota o “princípio da precaução”, o qual exige a garantia de que qualquer nova planta introduzida não se tornará futuramente uma erva daninha. Por causa desse princípio, forrageiras bem conhecidas como a leucena e o capim buffel foram catalogadas como plantas ambientalmente danosas, portanto, indesejáveis no território australiano”
2 – De utilização da pastagem
Competição é uma interação populacional que existe quando dois ou mais organismos disputam a ocupação de um único nicho ecológico. No caso dos herbívoros, ela se manifesta quando duas ou mais espécies demandam o mesmo recurso forrageiro. Nos trópicos, mesmo a competição intra-específica (entre indivíduos da mesma espécie) é, geralmente, muito baixa em função da grande disponibilidade dos recursos alimentares, da maior heterogeneidade espacial do meio-ambiente favorecendo o aparecimento de vários nichos.
Nicho é o papel funcional de um organismo na comunidade. Na formação das grandes áreas de pastagens plantadas no Brasil, usando-se geralmente, o germoplasma de apenas uma gramínea forrageira, está implícita a intenção de criar um único nicho a ser ocupado ou utilizado somente por um tipo de animal pastejador: o bovino. Embora seus resultados possam ser ótimos ou bons a curto e médio prazo, essa relação biunívoca boi e pastagem monoespecífica, apesar dos cuidados que venham a ser empregados, é muito difícil de ser mantida em elevado equilíbrio produtivo por tempo muito longo, devido a duas causas básicas.
A primeira e mais fundamental é que o somatório de todos os fatores bióticos (fluxo de diferentes formas de vida) e abióticos (quantidade de chuva, radiação intensa, temperatura na faixa adequada, etc.) que permeiam a maioria dessas áreas de pastagens induz à estabilização da comunidade de plantas em um nível bem mais elevado de complexidade e de diversidade.
Em segundo lugar, uma espécie botânica submetida ao uso contínuo e intenso pelo mesmo tipo de animal devido à sua elevada aceitabilidade, decresce, com o tempo em abundância relativa, perdendo a dominância na comunidade, modificando o seu hábito de crescimento e o microambiente. A conseqüência disso é o estabelecimento na área de novas espécies ou classes de plantas, alterando o equilíbrio produtivo da utilização monoespecífica do binômio boi-forrageira, previamente existente.
Sob a ótica ecológica, o aparecimento na área de novas espécies de plantas é benéfico porque forma novos nichos. É um bom sinal, pois indica que a sucessão vegetal é progressiva, ou seja, em direção à comunidade-clímax. Por outro lado, isso não é bom para a pecuária bovina, podendo significar o início do processo de degradação da pastagem com possíveis perdas na sua capacidade de suporte.
Apesar de a última situação ser indesejável sob o ponto de vista da bovinocultura de corte, ela pode também ser encarada por outro ângulo. “Nichos vazios” em conjunção com variações fisiográficas locais (de relevo, orientação quanto à radiação incidente, ventos dominantes, etc.) formam “habitats” diferenciados que podem ser ocupados ou utilizados por outros animais pastejadores dotados de um grau maior de plasticidade nos seus hábitos alimentares do que os bovinos. Esse é o caso dos ovinos e dos caprinos, podendo-se fazer, desse modo, uso da complementaridade de dietas, interação entre organismos oposta à competição.
De acordo com os seus hábitos alimentares, os bovinos são classificados como os menos seletivos dos ruminantes, enquanto os ovinos e os caprinos são agrupados como forrageadores intermediários, mudando os hábitos alimentares e ajustando a seleção de suas dietas mais facilmente à disponibilidade de forragem e à estação do ano.
Estudos consistentes têm demonstrado que a seleção de dieta dos bovinos não é afetada pela presença do ovino nem do caprino, em termos de composição botânica e de valor nutritivo. Portanto, mesmo em pastejo simultâneo, não existe, normalmente, uma acentuada competição por forragem entre esses pequenos animais e os bovinos.
Oportunamente, convém ressaltar um aspecto fundamental. O uso direto do peso corporal não é adequado para determinar-se a ralação de equivalência entre essas espécies animais para pastejo coletivo. Entretanto, uma estimativa da relação ou substituição dos diferentes tipos de animais que uma pastagem pode suportar (carga animal) é uma função do consumo de forragem pelos animais, da composição botânica e da forragem disponível naquela área.
Pastejo conjugado como alternativa de uso da pastagem
A complementaridade na seleção de dieta pelos animais tem sido uma ferramenta muito útil para promover uma melhor utilização das diferentes classes de forragens e de espécies de plantas, em várias partes do mundo.
A exploração concomitante de duas ou mais espécies animais pode ser, de alguma maneira, financeiramente mais estável do que uma atividade com um único tipo de animal (somente o bovino, por exemplo), pelo maior controle dos efeitos das amplas flutuações do mercado de carne e pele.
De início, essa estratégia poderia ser tentada em pequenas áreas das consideradas “pastagens sujas”. Na ausência de qualquer indicação da pesquisa, 10 a 20% da carga animal total, que vinha sendo utilizada na área com bovinos, poderiam ser constituídos por equivalente peso vivo de ovinos/caprinos com ligeira redução no número de bovinos. Nessas áreas, os ovinos e/ou os caprinos se encarregariam de limpar as “sujeiras” existentes, transformando-as em carne e pele. E mercado, tanto interno como externo para esses produtos, existe e não é nada desprezível.
A título de informação, o Nordeste do Brasil tem cerca de 12,3 milhões de caprinos e 8,2 milhões de ovinos. Mesmo assim, o “deficit” anual de carne ovina e caprina nessa região é estimado em torno de 36,0 mil toneladas de equivalente carcaça. Isso corresponde à necessidade de uma oferta adicional de 2,6 milhões de indivíduos das duas espécies para abate anualmente. Apenas o Ceará importa, mensalmente, cerca de 40 toneladas de equivalente carcaça de ovinos do Uruguai e Rio Grande do Sul para atender à demanda da região metropolitana de Fortaleza. No Estado de São Paulo há um “deficit” anual de abate estimado em torno de 2,0 milhões de cordeiros.
Por sua vez, os números do mercado externo são bem mais expressivos. Somente os Emirados Árabes Unidos importaram, principalmente da Austrália, Nova Zelândia e Índia, no biênio 1994/1995, uma média de 1,7 milhão de ovinos e caprinos abatidos e 1,4 milhão de indivíduos vivos dessas espécies. Em valores pecuniários, essas importações foram da ordem de US$ 91,7 milhões. Por outro lado, o grupo de estados que constituem os chamados Países do Golfo Pérsico importaram em 1993 mais de 10 milhões de ovinos vivos e uma correspondente quantidade de carne (em equivalente carcaça) fresca, resfriada ou congelada de ovinos e caprinos. O valor dessa transação foi da ordem de US$ 500 milhões.
Consideraçãoes finais
Pelo o exposto acima, o uso conjunto de ovinos e/ou caprinos e bovinos pode ser uma alternativa interessante para algumas áreas de pastagens plantadas degradadas ou em processo de degradação. Além de resultar numa produtividade de carne e pele mais elevada por área de pastejo, com essa prática, existe ainda o potencial para manipular e direcionar a sucessão da comunidade de plantas, mediante o controle do pastejo da mistura dos tipos de animais. E, desde que a carga animal seja corretamente ajustada, isso pode significar uma produção animal economicamente mais eficiente, conjugada com uma maior estabilidade do ecossistema da pastagem.
No entanto, para que a adoção dessa estratégia seja ecologicamente sustentável e economicamente viável, é imperativo uma quebra ou mudanças nos paradigmas estabelecidos quanto à formação e utilização das pastagens plantadas nessas áreas. Aí, então, o enfoque mais ecológico seria posto em prática, mediante redução no uso intenso e exclusivo de algumas práticas agronômicas e incorporando a um seleto grupo delas os conhecimentos e os preceitos que norteiam o manejo das pastagens nativas.
Assim, uma vez que, estabelecidas e sob pastejo, grandes áreas de pastagens plantadas comportam-se como um sistema ecológico complexo e dinâmico, qualquer intervenção nelas será mais exitosa e duradoura se conduzida sob uma visão holística de organismo.
Esse será o desafio que pesquisadores, professores e consultores brasileiros versados na ciência e na arte do manejo das chamadas pastagens cultivadas, inexoravelmente, enfrentarão no decorrer das próximas décadas.
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Expedito Aguiar Lopes, é engenheiro agrônomo M. Sc. Manejo de Pastagem Nativa, da Embrapa Meio-Norte
João Avelar Magalhães, é médico veterinário M. Sc. Produção Animal, da Embrapa Meio-Norte