“A diferença de Sadia para Seara é enorme. Essa guerra não existe”. A frase peremptória foi dita por um ex-diretor da BRF há seis anos, quando a marca da JBS, estrelada por Fátima Bernardes, ameaçava incomodar — mas a dona de Sadia e Perdigão tinha números para ostentar a pose hegemônica.
Fosse um tuíte, a frase entraria para a lista daqueles que envelhecem mal. A Seara não só aproveitou os ganhos de sinergias com a carne bovina da JBS para desbancar a ex-líder Perdigão em alimentos congelados (categoria composta por itens como hambúrguer, pratos prontos, almôndega, entre outros) como derrubou recentemente o longo reinado da Sadia em presunto.
Quando Fábio Miranda, então diretor de marketing da BRF, disse em julho de 2015 que Sadia e Seara estavam separadas por um abismo, uma incisiva peça de propaganda do presunto da Seara assinada por Washington Olivetto estava em jogo. Àquela altura, a Sadia tinha 54,5% do mercado de presunto e a Seara, 14,6%. Naquele momento, a volta da Perdigão ao mercado de presunto, após três anos suspensa por remédios antitruste do CADE, parecia uma barreira de contenção forte o suficiente. Parecia.
Nos últimos meses, as icônicas marcas da quase nonagenária empresa passaram a ficar ainda mais pressionadas pelo avanço da Seara, o que fontes próximas à BRF atribuem ao intenso movimento de repasse de preço necessário para compensar o aumento de 60% dos custos de produção. Segundo uma fonte, a concorrência leva mais tempo que a BRF para repassar, o que provoca “instabilidade no market share” no curto prazo.
Curiosamente, os executivos da BRF mudaram recentemente a forma como reportam o market share no Brasil. Ao contrário do tradicional gráfico com a evolução de quatro categorias (frios, margarinas, congelados e embutidos) e do consolidado nos sete bimestres anteriores, a BRF informou num texto mais geral, sobre marcas e inovação no Brasil, e sem comparação temporal, que detinha 57,9% em margarina, 47,3% em frios, e 44,3% em congelados.
Para um interlocutor próximo ao tema, a exclusão dos dados de market share do relatório de resultados é uma forma de se alinhar ao mercado, uma vez que os concorrentes não divulgam participação de mercado, segundo levantamento da equipe de relações com investidores com companhias e analistas que incluiu também outros setores. Também pesou na decisão o recorte da leitura da Nielsen, que só acompanharia 50% do mercado da BRF.
Mesmo assim, a mudança não passou despercebida no mercado. “Provavelmente mudaram porque continuou a cair. Precisam pintar a figura sempre colorida e bonitinha”, criticou um analista.
Dados da Nielsen obtidos pelo Pipeline mostram que a intuição do analista estava em dia. Pela primeira vez na história, a marca Seara tirou a Sadia da liderança em presunto. De janeiro a julho, a fatia da Sadia (em valor) caiu de 26,6% para 22,8%. A Seara, em contrapartida, pulou de 22,5% para 24,4%.
A Perdigão também sofreu, perdendo quase três pontos. Em julho, o share estava em 15%. Na disputa, a cooperativa Aurora também tirou nacos das marcas da BRF, passando de 5,4% em janeiro para 6,9% no mês passado.
Os números fazem parte do Nielsen Scantrack, que cobre autosserviço e cash and carry (atacarejo). À reportagem, uma fonte sustentou que a pesquisa só pegaria 30% do mercado da BRF. A ferramenta é, no entanto, uma das mais rápidas para ajudar a indústria a ler as dinâmicas do market share.
O chacoalhão em presunto ocorre em meio a custos mais altos, mas também com uma Seara que vem investindo bilhões em fábricas para dobrar de tamanho e ganhando a atenção dos consumidores com inovação e uma boa dose de marketing, incluindo inserções no Big Brother Brasil.
Procurada, a JBS não quis fazer comentários sobre a disputa. “Nosso foco é o consumidor. Por isso investimos continuamente em inovação e na qualidade dos nossos alimentos. Essa é a nossa obsessão”, disse o diretor-executivo de alimentos preparados da Seara, João Campos, em nota.
A ação mais recente foi a criação de uma linha de congelados apimentados, mas a mais barulhenta do ano foi o lançamento do Levíssimo, um embutido de lombo suíno que une o apelo do sabor do presunto (peça que é feita de pernil, uma carne naturalmente mais gorda) com a leveza do peito de peru. Em poucos meses, o novo produto atingiu 2,9% do mercado de presunto. Somando Levíssimo e o presunto tradicional, a Seara teria 27,3% do mercado.
Num mercado de frios que movimenta R$ 8 bilhões anuais, o presunto não é o único produto da gôndola. A mortadela é a queridinha do brasileiro e a Perdigão Ouro, uma campeã de vendas, parece longe de ter a coroa ameaçada, mas a trajetória do presunto recomenda cautela. A Seara vem avançando rapidamente.
Desde janeiro, a participação da Perdigão Ouro em mortadela defumada caiu mais de cinco pontos, de 58,8% para 53,2%. A Seara pulou de 22,5% em janeiro para 30,7% em julho, tirando share da própria Perdigão Ouro e da Sadia, que amargou uma redução de 11,1% para 6,8%. Nessa disputa, a Aurora vem oscilando entre 1,5% e 2,1%.
Na leitura de uma fonte que acompanha a BRF de perto, os repasses de preços podem até perturbar o market share momentaneamente, mas já mostraram resultados em rentabilidade, com o negócio de Sadia e Perdigão no Brasil entregando margens maiores que a concorrência. O problema é que o avanço da Seara nos últimos anos não é um episódio isolado em momentos de reajustes de preços liderados pela BRF.
Em retrospectiva, a expansão da Seara não se deu com uma guerra de preços que destrói margens. Na categoria de congelados, que passou a ser liderada pela marca da JBS há um ano e meio, a diferença de preços para a Sadia, que normalmente reputa premium price, vem caindo. Em 2014, logo após a aquisição da marca pela JBS, os produtos congelados valiam, em média, 75% dos itens da Sadia. Atualmente, valem 92%.
No que depender da Seara, a longeva liderança da Qualy também não será mais um filme tranquilo e feliz típico de propaganda de margarina. Depois de comprar os ativos da Bunge, a Seara passou a ter capacidade fabril de margarina e agora quer repetir a trajetória do presunto com Delícia e Doriana. O histórico fala por si.
Fonte: Valor Econômico.