Fernando Mesquita Sampaio1
As vacas loucas, la vache folle, the mad cow, la vaca loca, la mucca pazza… O medo pânico provocado pelo nome vulgar da encefalopatia espongiforme bovina é tal que entre os produtores de gado da europa o termo utilizado é ´´vaca positiva´´.
Na semana em que aconteceu o Salão Internacional da Alimentação em Paris, a Food Standard Agency publica seu relatório independente, onde aponta negligências cometidas pelo governo inglês no controle da doença, e na França descobre-se que a carne proveniente de um lote de animais onde mais tarde foi encontrada uma vaca contaminada, entrou no circuito de comercialização.
A ameaça de uma nova crise da vaca louca, como não se via desde 96, paira sobre a Europa.
Descrição da doença – a BSE
Apresentaremos a seguir uma breve descrição da doença e suas causas e um histórico da política de controle nos diversos países da comunidade européia e sua situação atual.
* Encefalopatias espongiformes são conhecidas e descritas desde 1732 quando uma doença conhecida como ´´tremedeira do carneiro´´ apareceu na Europa e espalhou-se depois aos cinco continentes.
* De modo geral, as TSE (encefalopatias espongiformes transmissíveis), embora não sejam contagiosas, são transmissíveis dentro da espécie e de uma espécie à outra, ocorrem na espécie humana e em outras classes de mamíferos, tem incubação longa (5 anos em média no caso da BSE), provocam a vacuolisação de neurônios,lesões espongiformes no sistema nervoso central e conseqüentes distúrbios motores, sensoriais e comportamentais e, evoluem inevitavelmente para a morte.
* Em 1936, Cuille e Chelle classificam o agente causador das TSE como não convencional, ou seja, não é um vírus nem uma bactéria.
* Somente em 1976, Stanley Prusiner descobre que a manifestação da doença depende da presença de uma forma alterada de uma certa glicoproteina do sistema nervoso central.
* Esta proteína deformada é denominada Proteinaceous infectious particle, ou PRÍON.
* Descobre-se também que em contato com a forma alterada, a proteína normal transforma-se em anormal propagando assim a infecção no sistema nervoso.
* Os primeiros casos de BSE acontecem em 1986 em algumas vacas na Inglaterra e em um bovídeos ungulado Nyala em um zôo de Londres.
* Em 1988, 2.514 casos são registrados na Inglaterra e um estudo epidemiológico revela a utilização de farinhas de carne e osso na alimentação como a causa da doença.
Observa-se claramente que dado o tempo médio de incubação da doença de 5 anos, as medidas tomadas em 88 e 90 refletiram claramente na regressão da curva de evolução da doença.
* A contaminação teria sido causada por resíduos de carcaças de ovinos infectados com a ´´tremedeira´´.
* O uso de farinhas animais na alimentação bovina é proibido logo em seguida no Reino Unido.
* O fato de não existirem casos antes de 86 pode ser explicado por uma mudança no método de extração de gorduras de farinhas animais, que até 1980 era feito à base de hexano, um poderoso solvente evaporado em seguida a uma temperatura alta o suficiente para destruir o príon.
* O método caro e perigoso do hexano (cancerígeno e inflamável) foi substituído por outro processo a uma temperatura mais baixa, o que deixa o príon intacto na farinha.
* Em 1990, os offals (miúdos) de risco como cérebro, medula espinhal, timo, baço e intestinos são banidos do circuito de comercialização.
Casos de BSE no mundo, fora do Reino Unido
A detecção ante mortem da doença não pode ser feita por sorologia (visto que não há resposta inflamatória da doença), a única forma de detecção é o eletroencefalograma, capaz de diagnosticar a doença mesmo em fase de incubação, mas evidentemente é um método pouco praticável em larga escala.
* Encontra-se em estudo a possibilidade de usarem-se proteínas marcadoras, visto que o conteúdo celular de neurônios mortos passa ao sangue e à urina causando modificações bioquímicas em sua composição.
A BSE e o risco ao homem
Na espécie humana, as encefalopatias espongiformes transmissíveis conhecidas são a doença de Creutzfeldt-Jakob, descrita pela primeira vez em 1920, a síndrome de Gertsmann-Sträussler-Scheinker, descoberta em 1936, o Kuru (doença que acontecia em mulheres e crianças em um tribo isolada da Papua Nova Guiné, onde uma tradição fazia com que o cérebro de um homem morto fosse devorado pelo restante da família em seu funeral), estudado em 1957 por Gajdusek e a Insônia Fatal, relatada pela primeira vez em 1985.
A 20 de março de 1996, o SEAC (Spongiform Encephalopathy Advisory Committee), uma equipe especializada da Food Standard Agency anunciou 10 casos de uma nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob (vCJD), que seria provavelmente uma conseqüência da ingestão do príon da BSE.
Na ocasião, o mercado da carne sofreu uma depressão nunca vista (embora até hoje não tenham sido encontrados resíduos de príons em músculos), obrigando Bruxelas a intervir e estocar na França perto de 1 milhão de toneladas de carne congelada.
* Vários países embargaram a importação de carne, farinhas animais e animais vivos provenientes do Reino Unido.
Política de combate à doença
Da Agência France Presse, 26 de outubro : “A Europa está dividida pelo risco provocado pela doença da vaca louca, se a Suíça, a Inglaterra, a França e a Bélgica estão inegavelmente atingidas pela epidemia e tomam fortes medidas de precaução, a situação é mais relaxada em outros países, a ponto de algumas nações se considerarem isentas da doença.
Os ingleses estimam que a severidade das medidas tomadas em seu país tornam a carne inglesa mais segura que outras, fato contestado pelo relatório da FSA.
Enquanto na Inglaterra, somente o animal suspeito deve ser abatido e descartado, em outros países como a França e a Bélgica é todo o rebanho que é descartado, caso a análise do animal suspeito seja positiva.
Duramente atingida pela epidemia, a Suíça tomou medidas drásticas de controle da BSE.
Desde 1990 ela proíbe a importação de farinhas animais e animais vivos do Reino Unido.
No mesmo ano, os suíços proíbem o uso de materiais com risco para alimentação, medida tomada pela França somente em 1996.
A Suíça, seguida da França, Dinamarca e Irlanda estabeleceram programas de vigilância e rastreabilidade de seus rebanhos, e utilizam desde janeiro de 1999 o teste Prionics para detectar a BSE.
Depois de vários alertas dos grandes grupos de distribuição franceses, a França aumentou ainda mais seu dispositivo de precaução. E notadamente o primeiro país a proibir o uso de gorduras animais na alimentação de ruminantes.
Essas gorduras eram até hoje utilizadas em produtos substitutos do leite para alimentação de bezerros e como complemento energético para ruminantes.
Em entrevista ao Le Fígaro, o professor Vincent Carlier da Escola Veterinária de Maisons-Alfort diz que é bem possível que esses substitutos de leite sejam contaminados desde o inicio pela gordura animal, uma vez que em toda gordura animal existe a presença de resíduos de proteína.
Esta hipótese explicaria como um bezerro nascido em uma fazenda e alimentado com produtos de outra fazenda poderia ter sido contaminado. Mas essas gorduras, assim como as farinhas de carne e osso são ainda permitidas na alimentação de aves, porcos e peixes.
A proibição total destas gorduras e farinhas (590 mil t, provenientes de 2,8 milhões de t de matéria prima) levanta múltiplas questões, entre elas a substituição de proteínas animais por proteínas vegetais na alimentação de ruminantes.
Segundo Charlotte Dunoyer, diretora cientifica do Sindicato Nacional das Industrias de Alimentação Animal, 3 milhões de toneladas de torta de soja são utilizados anualmente na França. Para comparar, a safra francesa de soja deste ano deve ser da ordem de 267 mil toneladas.
Boa notícia aos cerealistas brasileiros…
Na Bélgica, o controle também se faz através da proibição de farinhas animais para ruminantes desde junho de 1994, retirada de circuito de matérias de risco e abate sistemático do rebanho em caso da presença de animal doente.
Em 2001 a Bélgica devera criar uma Agencia Federal de Segurança Alimentar.
Em Portugal, onde a situação também é inquietante, o jornal Diário de Noticias baseando-se num estudo feito por especialistas afirma que o número de casos existentes no País depois de 1990 seria mais do que o dobro do constatado pelas autoridades sanitárias portuguesas, uma diferença explicada pela utilização de um sistema passivo de vigilância da BSE, (o que quer dizer que se espera a manifestação dos sintomas para fazer o teste).
Enquanto isso, países como Holanda, Dinamarca, Grécia, Espanha, Itália, Áustria, Finlândia, Suécia e Alemanha afirmam que os únicos casos registrados em seus territórios foram constatados em animais vivos importados do Reino Unido.
O professor belga Marcel Vanbelle, químico, biólogo, nutricionista e farmacêutico é o vice presidente do Comitê Cientifico da União Européia. Em entrevista ao Le Télégramme, afirma ser a favor de uma proibição completa de toda farinha e gordura animal não só na alimentação de ruminantes como na alimentação de todas as espécies utilizadas na produção de carne e leite.
Vanbelle afirma ainda que o risco zero não existe em nenhum país, e que ninguém pode se declarar indene da doença.
No entanto o ministro da Agricultura alemão, Karl-Heinz Funke declarou à imprensa que não há um só caso de vaca louca no país.
Herr Funke qualifica de especulações um relatório do Comitê Cientifico da União Européia segundo o qual a BSE poderia estar presente na Alemanha.
Os alemães continuaram a incorporar cérebros bovinos, material de alto risco, em suas salsichas pelo menos até outubro deste ano, quando uma diretiva da União Européia retirou todos os miúdos de risco da cadeia alimentar.
O relatório da FSA
Lord Phillips é formal : ´´Durante todo este episódio, a comunicação sobre os riscos da encefalopatia espongiforme bovina foi moldada sobre o medo de provocar uma reação irracional de pânico na população´´.
Depois de dois anos e meio de investigações sobre as origens, desenvolvimento e consequências da crise da vaca louca, o relatorio da FSA afirma que nem os ministros responsáveis pelo problema e nem os funcionários públicos e cientistas encarregados de lhes aconselhar, conscientemente subestimaram os riscos, eles simplesmente não acreditaram.
Além disso a idéia de segurança alimentar ainda não era a moda.
O Ministério da Agricultura inglês é vivamente criticado por sua postura ambigua.
De um lado apoia os produtores e de outro protege os consumidores…
John Gummer, ministro da agricultura no auge da crise é também criticado por ter constantemente inocentado a carne bovina. Para transmitir sua convicção à opinião publica, Gummer não hesitou em fazer a filha Cordelia, de 4 anos engolir um hamburguer em frente às cameras de TV.
Os profissionais têm também sua parte de responsabilidade. Em 1995, quando mais uma vez o público se interrogava sobre os perigos potenciais do consumo de carne bovina, a Meat and Livestock Commission elaborou uma campanha publicitária ´´na qual a hipérbole substituía a exatidão dos fatos…´´
Oitenta e cinco casos da nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob foram relatados no Reino Unido e destes,80 morreram.
Certamente a revelação mais bombástica do relatorio, o número de casos de vCJD poderia chegar a 136 mil. No entanto, tendo em vista as dificuldades de uma estimativa como esta, principalmente em calcular o número médio de humanos infectados por cada animal doente, a susceptibilidade à infecção e à duração do período de incubação, o melhor que pode ser dito é que o número de pessoas afetadas estaria entre algumas centenas e 100 mil.
John Major , falando à Câmara dos Comuns no dia 29/10 fez a mea culpa de seu governo : ´´Nós devemos aceitar nossa responsabilidade pelas falhas constatadas´´. Às vitimas da vCJD, o atual ministro da Agricultura Nick Brown anuncia um fundo de indenização de milhões de libras.
Sir John Krebs, presidente da FSA diz que os ensinamentos desta tragédia já foram tirados, e que a Food Standard Agency se compromete a nunca omitir informações vitais sobre segurança alimentar.
O caso da carne contaminada na França
No dia 4 de outubro, um negociante entrega um lote de 11 vacas em um frigorífico à Villers-Bocage, região da Normandia na França.
Os animais não apresentam nenhum sintoma patológico nos exames efetuados pelos veterinários antes e depois do abate.
Dia 10 de outubro, o mesmo negociante entrega um novo lote de vacas, onde uma delas apresenta sinais de cansaço. Esta vaca é imediatamente posta de lado e conforme o programa de vigilância do ministério da Agricultura, um teste Prionics é solicitado.
Dia 19 de outubro, a Direção de Serviços Veterinarios do Calvados indica o resultado positivo do teste.
Dia 20 de outubro é iniciado um processo de retirada de toda a mercadoria fabricada com o lote do dia 4, que havia sido enviado aos supermercados Carrefour, Cora e Auchan.
O caso é intensamente veiculado pela imprensa mundial, inclusive no Brasil, com informações desencontradas e até mesmo falsas que causaram um significativo impacto, ainda não avaliado, no consumo de carne (dizem que o consumo caiu 25% na França).
Como em 96, cada país orienta seu consumo para a produção nacional, embora países como Portugal e Grécia sejam extremamente deficitários em carne.
A região da Baixa-Saxônia alemã proíbe a importação de carne francesa e rumores sobre pedidos de embargo contra a França correm na Grécia, Alemanha, Itália e Portugal.
A Russia acaba de proibir a importação de carne francesa, embora em 96 os russos mesmo tenham absorvido cerca de 800 mil toneladas de carne congelada pela intervenção estatal.
O paradoxo é que a França estabeleceu talvez um dos sistemas mais eficazes de vigilância do rebanho na Europa, e 48 mil testes aleátorios a mais serão efetuados nos frigorificos franceses até o final do ano.
Obviamente, quem procura acha. Percebendo isto, a imprensa notadamente na Alemanha e em Portugal começa a contestar a carne nacional e o controle efetuado pelas autoridades responsaveis em seus próprios paises. Talvez seja o primeiro passo para fazer com que essas autoridades sintam o peso da responsabilidade antes que seja tarde demais.
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1Engenheiro Agrônomo especialista em mercado de carne e de leite
Associado da Scot Consultoria
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