Ainda não se consolidou no meio rural o que chamaríamos de consciência sanitária efetiva.
Não esperava, e nem desejava, que um exemplo flagrante desta falta de consciência fosse se manifestar a pouco mais de 40 km da minha casa.
Refiro-me ao foco de Febre Aftosa surgido no município de Jóia-RS.
São significativos os prejuízos econômicos decorrentes do sacrifício de mais de 11 mil animais e das restrições comerciais impostas à carne gaúcha.
Mas, tão ou mais importante do que isto, é o fato de que este foco de febre aftosa expôs de forma contundente a fragilidade dos serviços de defesa sanitária animal da Secretaria Estadual de Abastecimento e Agricultura do RS (SAA).
Equívocos
A sucessão de equívocos e intervenções inadequadas subseqüentes ao surgimento do foco, patrocinados por autoridades das esferas federal e estadual, atestam de forma veemente que o amadorismo ainda é uma característica dominante nas nossas instituições públicas. Vejamos alguns exemplos:
1. Detectado o foco de febre aftosa por um médico da atividade privada, decorreram 20 dias até que o mesmo fosse reconhecido oficialmente e medidas de controle efetivo fossem implementadas.
2. O Ministério da Agricultura e a SAA-RS que deveriam concentrar esforços no sentido de controlar a evolução da doença, transferiram o problema da área técnica para esfera política e passaram a trocar “farpas” mais virulentas do que o próprio vírus da febre aftosa.
3. Inicia-se então o processo de “caça às bruxas” – de quem é a culpa? Surgem hipóteses delirantes e fala-se até em criar uma CPI para apurar responsabilidades.
O cerne da questão
Não há necessidade de se remover montanhas para apurar as causas do ressurgimento da febre aftosa no RS.
Se nos munirmos de coerência e humildade chegaremos com facilidade ao cerne da questão.
Em primeiro lugar, seria de grande utilidade encontrarmos uma resposta honesta para as seguintes perguntas:
– quais os fundamentos técnicos que conduziram à tomada de decisão no sentido de estabelecer que o RS é zona livre de febre aftosa sem vacinação?
Parece-me que aqui reside o componente fundamental da questão
– A estrutura operacional atual da Divisão de Defesa Sanitária Animal da SAA foi criteriosamente analisada e considerada em condições de dar suporte a essa decisão?
Suspeito que não. Se essa análise tivesse sido feita, ainda que de forma superficial, constataríamos que os serviços de defesa sanitária animal do RS vem sendo, há pelo menos 15 anos, submetidos a um processo de abandono e sucateamento.
Alguns exemplos:
1. Uma parcela considerável das Inspetorias Veterinárias (unidades sanitárias estaduais estabelecidas nos municípios) está há muito tempo sem médico veterinário titular. Teoricamente são atendidas pelas Inspetorias vizinhas.
2. O número de veículos disponíveis para tarefas de controle e fiscalização é incompatível com as reais necessidades. Exemplo – numa região que faz fronteira com a Argentina e onde estão localizadas 18 Inspetorias Veterinárias, até há poucos meses existiam 03 automóveis em condições de funcionamento.
3. O Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamour, (IPVDF) laboratório de diagnóstico e pesquisas vinculado ao governo do estado e que em termos de febre aftosa já foi considerado laboratório de referência para a América Latina, está submetido a um regime de pobreza franciscana. Faltam técnicos, equipamentos e material de consumo.
4. Na década de 70 graças a um convênio firmado entre os governos do estado e o da Inglaterra, foi implantada uma extensão do IPVDEF em Ijuí-RS. Além dos equipamentos, o governo inglês disponibilizou um médico-veterinário daquele país que permaneceu conosco durante dois anos atuando nesse laboratório. O que resta desse empreendimento é um prédio literalmente abandonado, semi-destruido pelo tempo e pela ação de vândalos que arrancaram até as portas e janelas do mesmo. Hoje, um verdadeiro monumento ao descaso.
5. O RS tem mais de 100 km de fronteira seca com o Uruguai (país que neste momento enfrenta sérios problemas com a febre aftosa). Nessa fronteira o trânsito de bovinos é constante e sem controle da vigilância sanitária. Inclusive há fazendas cujas áreas estão localizadas parte em território brasileiro e parte em território uruguaio.
Desmanche
A bem da verdade é oportuno que se registre que seria uma leviandade imputar ao atual do governo do estado, que assumiu o poder há dois anos, a responsabilidade total pelo que está acontecendo neste momento.
Conforme já foi mencionado, o processo de “desmanche” dos serviços de defesa sanitária animal vem ocorrendo há pelo menos 15 anos.
Decreto
Ao contemplarmos este cenário é inevitável que nos deparemos com uma questão crucial: existem condições concretas para que as autoridades gaúchas, por decreto, determinem que o RS é zona livre de febre aftosa sem vacinação?
Penso que seria mais prudente, com profissionalismo e isenção, reavaliarmos esta posição e, juntamente com os nossos vizinhos e parceiros do Mercosul (Uruguai e Argentina), estabelecermos de forma transparente estratégias comuns de controle e erradicação da febre aftosa.
De qualquer modo, os recentes acontecimentos nos deixaram algumas lições interessantes tais como:
1. o vírus da febre aftosa é analfabeto e como tal, não lê e nem obedece regulamentos, decretos ou leis gerados nos confortáveis gabinetes oficiais.
2. sem o estabelecimento de uma consciência sanitária efetiva que permeie todos os segmentos da cadeia produtiva será impossível erradicar qualquer doença infecciosa.
3. como produtores de carne bovina de boa qualidade, devemos permanecer com os olhos voltados para o mercado consumidor dos países ricos. Mas, não podemos deixar de fazer com eficiência e profissionalismo os deveres de casa.
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